sábado, 3 de fevereiro de 2018

Porque parece que se tem de ser terrivelmente explícita


“Escrevo-te à medida de meu fôlego. Estarei sendo hermética como na minha pintura? Porque parece que se tem de ser terrivelmente explícita. Sou explícita? Pouco se me dá. Agora vou acender um cigarro. Talvez volte à máquina ou talvez pare por aqui mesmo para sempre. Eu, que nunca sou adequada.

Voltei. Estou pensando em tartarugas. Uma vez eu disse por pura intuição que a tartaruga era um animal dinossáurico. Depois é que vim ler que é mesmo. Tenho cada uma. Um dia vou pintar tartarugas. Elas me interessam muito. Todos os seres vivos, que não o homem, são um escândalo de maravilhamento: fomos modelados e sobrou muita matéria-prima – it – e formaram-se então os bichos. Para que uma tartaruga? Talvez o título do que estou te escrevendo devesse ser um pouco assim e em forma interrogativa: ‘E as tartarugas?’ Você que me lê diria: é verdade que há muito tempo não penso em tartarugas.”



(Clarice Lispector, Água viva, 1973)

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