quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Ulisses



Este é um velho frustrado por ter feito seu filho
muito tarde. Perscrutam-se às vezes, na cara
– noutros tempos bastava um tabefe. (O pai sai
e retorna com o filho que esfrega a bochecha
sem erguer mais os olhos.) O velho se senta
até a noite, diante da grande janela,
mas não passa ninguém pela rua deserta.

De manhã, o rapaz escapou e retorna
esta noite. Escarnece, decerto. A ninguém
vai dizer se comeu seu almoço. Talvez
tenha os olhos pesados e deite em silêncio:
duas botas de lama. Após um mês de chuva
a manhã era azul.

Pela fresca janela
entra um cheiro de folhas amargo. Já o velho
não se arreda do escuro e não dorme de noite,
mas queria ter sono e esquecer-se de tudo,
como outrora, ao voltar de uma longa jornada.
Aquecia-se, antes, gritando e batendo.

O rapaz, que já está de regresso, não leva
mais tapas.
O rapaz começou a crescer e descobre
cada dia algo novo e não fala a ninguém.

Não há nada na rua que escape ao olhar
daqui desta janela. E o rapaz perambula
todo o dia na rua. Não busca mulheres
e não brinca no chão. Ao final, sempre volta.
O rapaz tem um jeito de ir-se de casa
que, quem fica, se sente jogado de lado.



(Cesare Pavese, Trabalhar cansa, 2009, Ed. Cosac Naify & 7Letras. Tradução: Maurício Santana Dias. O original foi publicado em 1936.)

domingo, 1 de outubro de 2017

Alegria


                                                                                                                                                    para a Ludi

Nos dias em que o dia
parece coincidir com o teu desejo,
aguardas entre coisas que aguardam,
e entre coisas que ardem, ardes.
Aprendeste com os bichos os nomes dos bichos
e com o mar              
o amor enorme do mar.
E então estás alegre como um pátio
como uma coisa de barro
posta sobre a mesa.
Tens nas mãos um livro quente
de coisas para cantar.
Toda a geografia do verão.
Dispões de palavras suficientes
para o mundo de que dispões,
e a tua idade coincide com a idade que tens,
e as horas do dia equivalem
às horas do teu corpo acordado,
e a isso chamas alegria.
Mas há também dias de desenfreado desencontro
em que as tuas mãos incendeiam o que tocam
e a tua boca ultrapassa as palavras
e o teu amor não sabe do que é amor
e o teu corpo está agudo e esbarra
e não cabe no mundo,
corpo de limalha e noite sibilante.
E a isso chamas também alegria.


(Ana Martins Marques, A vida submarina, 2009, Ed. Scriptum)