domingo, 31 de janeiro de 2016

Sertão Urbano

"Os cavalos costuram o trânsito congestionado. Alguns param, encostam seus focinhos nos vidros, assombram as pessoas, depois saem. Outros parecem perdidos: correm, param, retrocedem, trotam de um lado a outro da mesma via. Surgem mais oito, Mayana conta. Finalmente, olha para trás e vê que corre em sua direção um número de cavalos equivalente aos carros parados. Olha outra vez para frente, empurra fortemente suas costas contra o banco, coloca o cinto de segurança. Não há mais ninguém do lado de fora, exceto os motociclistas, que não têm onde se esconder."


(Clique na ilustração abaixo para ler na íntegra crônica nova escrita para O Salto. Uma crônica de cavalo.)


terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Tentativa de resenha: "Cartas da mãe", Henfil


De 1977 a 1980, o cartunista Henfil escreveu uma coluna, para a revista Isto é, que consistia em cartas endereçadas a sua mãe. Em 1977, quando recebeu o convite e a ideia, ele vivia em Natal (RN) e ela, no Rio de Janeiro; o irmão Betinho estava exilado no Canadá pela ditadura que, no discurso, abria-se lenta e gradualmente para a democracia. Henfil utilizou as cartas para criticar o governo e matar saudade dos seus.

Este livro reúne os textos escritos durante esse período. Neles, Henfil mescla características de crônica política e de de carta pessoal. Sua genialidade aqui foi cutucar o governo com humor e afeto. Sim, o afeto cotidiano das conversas com sua mãe. Ele, inclusive, atribuiu à destinatária tão ilustre o fato de a censura nunca ter vindo: É como se eu estivesse escondido debaixo da saia da mãe. Tinham que passar por cima dela pra me pegar.

Através das cartas, acompanhamos a história do Brasil desse período – greves no ABC paulista, greves gerais, campanha pela Anistia, prisões políticas, saudade do irmão, angústia, medos, apertos – e o fazemos através de lentes assumidamente subjetivas. Não havia apenas a pretensão de objetividade que se espera de alguém que comenta a realidade do seu país. Pelo contrário. Henfil tecia comentários políticos, mas, no final, despedia: A benção do seu filho.

Há ainda que ser ressaltado o forte caráter humorístico e irônico – herança do cartum –, além da coloquialidade. Certamente, esse foi outro motivo para a censura não ter vindo. É esperar muito que militares tão preocupados em prender, exilar, torturar, calar vozes, entendam de ironia. Entendam a força crítica de cartas tão afetuosas à mãe, uma “senhorinha inofensiva”, fazedora de biscoitos. Biscoitos que, isso é certo, às vezes não ficavam bons – eram os tempos. (...) Acho que a goma não é boa, da outra vez vai melhor, reflete Dona Maria.


(trechos aqui e aqui)


Cartas da mãe
Henfil
1980
Ed. Codecri
225 p.

Avaliação: 3,5/5

“Lembrei que Rômulo também estava morto e comecei a chorar tão sentida que se viu obrigada a esquecer seus mortos para me consolar. Disse que não há morte definitiva, nem sequer para ela, uma materialista. Que morte e vida se integram e se completam tão perfeitas como um círculo e por isso meu irmão continuava vivo: a vida precisa da morte para viver, “não sei explicar, entende?” Explicou.”


Lygia Fagundes Telles, As meninas, 1973

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Tentativa de resenha: "Um affair freudiano - Os escritos de Freud sobre a cocaína", Oscar Cesarotto


No fim do século XIX, iniciando sua carreira científica, o jovem Sigmund Freud comprometeu-se com o estudo dos benefícios da cocaína – alcaloide da planta de coca, advinha da América do Sul – em diversos usos terapêuticos: estimulante, anestésico, supressor da dependência de morfina, entre outros. A substância ainda era praticamente desconhecida na Europa e Freud foi um dos seus mais dedicados divulgadores. O cientista a estudava com o entusiasmo de quem sabe estar diante de uma descoberta valiosa. Movia-o o desejo de entrar para a história da ciência, previsão feita ainda em sua infância: uma curandeira disse para sua mãe que ele seria uma personalidade importante e esse destino antecipado lhe perturbou durante a vida inteira ao ponto de, antes de morrer, ainda estar insatisfeito consigo, por pensar não ter cumprido a profecia.

Freud acreditava que o legado que deixaria para a ciência seriam seus estudos sobre a cocaína. Porém, com o avançar dos experimentos em amigos, pacientes e, principalmente, em si mesmo, a substância revelou-se capaz de criar dependência química tanto quanto a morfina e extrapolou os limites clínicos. Ainda em fins do século XIX, Freud foi responsabilizado moralmente pelo alastramento do cocainismo. Sua pesquisa foi um fracasso. E, não obstante as tentativas de se livrar desse passado, seu inconsciente já havia sido marcado por ele.

Este livro de não-ficção é dividido em três partes: na primeira, percorre a história do cientista jovem e sua ligação com a cocaína; na segunda, compila todos os artigos científicos de sua autoria sobre o assunto e, na última, contextualiza o impacto da substância no final do século XX, abordando questões econômicas, sociais e políticas. O autor foi muito feliz ao incluir essa terceira parte, apresentando as consequências, um século depois, do entusiasmado estudo. Outro ponto a ser ressaltado é o fato de que, embora seja livro específico da área psicanalítica, sua linguagem, por não ser tecnicista, pode ser apreendida sem dificuldade por leigos.

Para além das questões biológicas e químicas, interessou-me especialmente a análise da história dos fracassos. Um fracasso específico que, não obstante ter sido silenciado, reverbera até hoje. Impossível não se perguntar se o contexto atual de tráfico e criminalidade envolvendo a cocaína seria diferente se um cientista pretensioso não tivesse um dia se maravilhado por seus efeitos clínicos. Ou, ainda, o quão subaproveitadas para fins médicos são algumas substâncias consideradas ilícitas pelo Estado. O que há para além do tabu das drogas? 




Um affair freudiano - Os escritos de Freud sobre a cocaína
Oscar Cesarotto
1989
Ed. Iluminuras
131 páginas

Avaliação: 3/5

sábado, 9 de janeiro de 2016

Tentativa de resenha: O livro dos sonhos, Jack Kerouac


A proposta é simples: escrever os sonhos da forma como eles vêm pela manhã: fragmentados, esmaecendo-se. Kerouac queria ouvir o inconsciente através de sua própria linguagem, sem a edição natural da fala e do pensamento. Acordava e, ainda sonolento, descrevia em sua agenda as imagens vistas durante o sono. Esse impulso resultou em O livro dos sonhos, obra de textos curtos e, por vezes, inacabados – como as próprias visões noturnas o são. As imagens se misturam e não há qualquer esforço do autor em se fazer entender. Por isso, a linguagem é o grande trunfo deste livro, a linguagem típica da geração beat: espontânea e fluida. Vários personagens de suas outras obras – On the road, Os subterrâneos – reaparecem em novas situações, sem nenhuma explicação especial, a não ser a de que o espírito não descansa, o cérebro se agita, a lua some e todo mundo tapa a cabeça com o travesseiro, usando touca de dormir, como afirma o autor na introdução. O grau de libertação através da linguagem atinge um extremo e é impossível, enquanto escritor, não se deixar contaminar. Extremos indicam caminhos.

Porém, o grande problema da obra é que, devido às narrativas serem curtas e desconexas, não há criação de vínculo efetivo com o leitor, o que prejudica a permanência na leitura. Chega um ponto em que o entendimento da proposta estética se consolida e não há muitas razões para seguir lendo. No entanto, para aqueles que não se importam em saltar páginas, vale a pena tê-lo sempre por perto, acordar pela manhã, abrir numa página qualquer, misturar seus sonhos aos do autor. Quem sabe, fazer seu próprio registro.



O livro dos sonhos
Jack Kerouac
1961
L&PM Pocket
250 páginas

Avaliação: 3/5

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Sete tentativas de perdão

"Li num bar: perdão só amanhã."


(Clique na imagem abaixo para ler na íntegra crônica escrita para O Salto. Crônica para ensaiar o perdão.)



terça-feira, 5 de janeiro de 2016

“Encaro o sol até a cegueira, não, não quero, agora não. Estava tão contente pensando só em letras e de repente elas foram se compondo, tão perigosas quando se juntam. Mas na raiz são descomprometidas. Umas crianças, A, B, H, M, O... Tão raro o X. Em declínio, o Z, rei desmemoriado, o irmão gêmeo S com a astúcia de um usurpador. Ponho o dedo em cima do F desventrado que Irmã Bula bordou, as letras também levam facadas no ventre, tiros no peito, socos, agulhadas, coices – também as letras são atiradas ao mar, aos abismos, às latas de lixo, aos esgotos, falsificadas e decompostas, torturadas e encarceradas. Algumas morrem mas não importa, voltam sob nova forma, como os mortos.”


- Lygia Fagundes Telles, As meninas, 1973