quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Crônica com Miró

"Encontro Miró num café. Ele tromba em mim e aproveita a colisão para oferecer seu mais recente livro, aDeus. Sentamos numa mesa, ele toma um cafezinho – é o que o dinheiro dá. Eu não peço nada. Estamos numa manhã de novembro e isso se justifica quando uma folha totalmente amarela despenca da árvore sobre nós. Conversamos sobre o livro, sobre quem sou, sobre quem nos tornamos. Nós, os desconhecidos. Quem os desconhecidos se tornam? a gente se pergunta, cotovelos apoiados na mesa. Desde logo compreendo que Miró oferece sua poesia a qualquer um com quem tromba. Esbarrar é sua publicidade e sua fome."

(Clique na ilustração abaixo e leia na íntegra a nova crônica que saiu n´O Salto. Crônica dividida com Miró.)



quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Faço frete

"Preciso destes cacos aqui. Tudo o que você precisa é de um documento em branco e de cortes. O caderno de anotações agora tem capa amarela, o sol se desbotou um pouco mais no caderno, nos cabelos dela. Ouço gritos ao redor, juro que ouço. Mãe, você não pode me culpar por não ouvir. O alto do sapato no corredor da empresa. Viro o rosto, olho. Cancelo o documento novo. Passo a passo."


(Clique na ilustração abaixo para ler na íntegra a nova crônica escrita para O Salto. Crônica para espatifar o texto no chão e não recolher os cacos.)



sábado, 20 de agosto de 2016

O artista silencioso, a tela ignorada



“Eu sinto uma grande emoção ao pensar que, espalhados pela cidade, neste ou naquele bairro modesto, aonde não chega a sirene dos cinemas, há criaturas que passam a parte mais feliz do seu dia pintando crepúsculos e fios d´agua, árvores e frutas, cabeças e torsos que ninguém verá, nem para elogiar nem para atacar (perdão: para atacar, há sempre público, e público que dispensa exame).

Penso nesse artista silencioso, que não vai nem irá nunca à Europa fazer o mesmo que fazem alguns amenos mocinhos beneficiados pela Escola de Belas-Artes: visitar o Louvre e a praça Pigale, frequentar os dancings e voltar mais impermeável ainda à verdadeira pintura. Artista sem medalha nem prêmio, obrigado, para manter-se, a exercer misteres que vão desde a burocracia pacífica até a laboriosa confecção de tabuletas, quando não até à incrível decoração de alpendres. Gosto desse artista bonzão, que não protesta nem se suicida, e que todos os anos expõe a sua tela ignorada na Exposição Geral de Belas-Artes de Minas Gerais.”


(Drummond, na crônica Do artista desconhecido, 1930)

sábado, 13 de agosto de 2016

Anotações sobre cachoeiras

"1)      Para se chegar a uma cachoeira é preciso, antes, percorrer uma trilha."

(Clique na ilustração abaixo e leia na íntegra a nova crônica escrita para O Salto. Crônica para confundir o que são pés, escrita, água. Crônica para se atentar à trilha.)




terça-feira, 26 de julho de 2016

Pequenos transes

"Pequenos transes", um poema inédito, saiu lá no blog do Antissarau. 

Você pode lê-lo inteiro aqui. 

Estrada é mar. 



segunda-feira, 4 de julho de 2016

É noite nesta encruzilhada

"Há esses dias em que tudo que toco vira sal. Termina o espetáculo e não paro de chorar. Algum desconhecido me consola, depois parte. Saio do prédio e a cidade está diante dos meus olhos. Inteira. Permaneço por longos minutos parado numa esquina. É noite nesta encruzilhada. Me disseram que os caminhos já estavam todos traçados. Cato pelas calçadas os livros espalhados."


(Clique na ilustração abaixo para ler na íntegra a nova crônica escrita para O Salto. Uma crônica da noite.) 




sábado, 25 de junho de 2016

Acomoda o gesto à palavra e a palavra ao gesto



Hamlet: Tem a bondade de dizer aquele trecho do jeito que eu ensinei, com naturalidade. Se encheres a boca, como costumam fazer muitos dos nossos atores, preferira ouvir os meus versos recitados pelo pregoeiro público. Não te ponhas a serrar o ar com as mãos, desta maneira; sê temperado nos gestos, porque até mesmo na torrente e na tempestade, direi melhor, no turbilhão das paixões, é de mister moderação para torná-las maleáveis. Oh! Dói-me até ao fundo da alma ver um latagão de cabeleira reduzir a frangalhos uma paixão, a verdadeiros trapos, trovejar no ouvido dos assistentes, que, na maioria, só apreciam barulho e pantomima sem significado. Dá gana de açoitar o indivíduo que se põe a exagerar no papel de Termagante e que pretende ser mais Herodes do que ele próprio. Por favor, evita isso. (...)

Também não é preciso ser mole demais; que a discrição te sirva de guia; acomoda o gesto à palavra e a palavra ao gesto, tendo sempre em mira não ultrapassar a modéstia da natureza, porque o exagero é contrário aos propósitos da representação, cuja finalidade sempre foi, e continuará sendo, como que apresentar o espelho à natureza, mostrar à virtude suas próprias feições, à ignomínia sua imagem e ao corpo e idade do tempo a impressão de sua forma. O exagero ou o descuido, no ato de representar, podem provocar riso aos ignorantes, mas causam enfado às pessoas judiciosas, cuja censura deve pesar mais em tua apreciação do que os aplausos de quantos enchem o teatro. Oh! já vi serem calorosamente elogiados atores que, para falar com certa irreverência, nem na voz, nem no porte mostravam nada de cristãos, ou de pagãos, ou de homens sequer, e que de tal forma rugiam e se pavoneavam, que eu ficava a imaginar terem sido eles criados por algum aprendiz da natureza, e pessimamente criados, tão abominável era a maneira por que imitavam a humanidade.”


(Willian Shakespeare, Hamlet, 1600-1601)

quarta-feira, 22 de junho de 2016

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Sê-los, o filme

Assista aqui o curta-metragem que a Fernanda Xavier gravou a partir de cartas trocadas entre Brenda K. e eu. Já falei sobre ele aqui. 

E agradecer nunca é o bastante.

sábado, 21 de maio de 2016

Foi o modo de ficarmos juntos

XIX

Um mal-entendido faz-te de cada jeito.
Lembro dos cachorros que escapavam
iam viver na rua de cima, sem asfalto.
Menos me assustavam as ausências
mas sim deixar a casa para trás
e se entregar ao caminho
que tinha uma vala tão grande na curva.
Os cães voltavam caramelos como o chão
e se eu ia lá chamar, mordiam-se as orelhas.
Às vezes tinha que atirar cascalhos,
fingida lançava, dissimulava pedras
pra que eles corressem de mim.
Foi o modo de ficarmos juntos.



- Júlia de Carvalho Hansen

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Lado a lado



Não somos bons de despedidas.
Passeamos lado a lado, os ombros tocando-se.
Já está começando a escurecer.
Estás pensativo, eu não digo nada.

Entramos nesta igreja para ver
alguém sendo enterrado, batizado, se casando;
depois vamos embora, sem olhar um para o outro.
Por que é que para nós nada dá certo?

Vamos sentar na neve pisoteada
do cemitério, suspirando de leve.
Com a ponta da bengala, traçarás palácios
em que viveremos felizes para sempre.

1917
- Anna Akhmátova

Lado a lado

Andamos juntos
lado a lado
mas sem nos tocar

os passos repetiam
os círculos
do jardim público

as coisas nas vitrines
as coisas que dissemos

naviforme
a lua
por cima

tantas vezes
ensaiamos a partida

mas nunca fomos bons
de despedida


- Ana Martins Marques

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Primeira caminhada

"Acordei em silêncio, almocei em silêncio, faço esta caminhada completamente calado. Prefiro me perder a pedir informação, hoje é domingo. Dia de descanso da fala. Permito aos pés falarem no lugar da boca. O ruído emitido é palavra. Evito o uso do mesmo vocabulário de dias da semana. Oi, bom dia, como posso chegar à avenida Santa Rosa? E o aeroporto, onde fica? Meus pés produzem neologismos."


(Clique na ilustra abaixo para ler na íntegra a nova crônica escrita para O Salto. Crônica para dizer com os pés.)



sábado, 2 de abril de 2016

O mundo me tornou egoísta e mau

"Mais um amigo se suicida. Dessa vez, uma amiga trans. Tomou remédios, pulou da janela. A última lembrança que tenho dela é a imagem de seus passos rápidos, cabeça baixa, olhar delirante, pela rua. Do outro lado da via, ela parecia cada vez mais perturbada. Não atravessei o asfalto para lhe perguntar se estava tudo bem, se eu poderia. Minhas perturbações, também eu as carregava. Sua cabeça baixa, seu olhar delirante também eram meus – motivações distintas. Quando soube da notícia, era manhã, tomava leite com achocolatado, comia uns biscoitos, ouvia Nara Leão. No prato, um último biscoito sobrou – ainda sobra. Nara cantava para ninguém."



(Clique na imagem abaixo e leia na íntegra a crônica escrita para O Salto. Crônica para abrir a Caixa de Pandora.)


quinta-feira, 24 de março de 2016

Bukowski, o computador e a máquina de escrever


“22/11/91 – 00:26

Bem, meu 71º ano foi um ano muito produtivo. Provavelmente escrevi mais palavras este ano do que em qualquer ano da minha vida. E, apesar de um escritor ser um mau juiz do seu próprio trabalho, ainda tenho a tendência de acreditar que estou escrevendo melhor do que antes – quero dizer, tão bem quanto nos meus períodos de auge. Este computador, que comecei a usar em 18 de janeiro, tem muito a ver com isso. Simplesmente é mais fácil escrever, a palavra é transferida mais rápido do cérebro (ou de onde quer que venha) aos dedos e dos dedos ao monitor, onde fica visível imediatamente – nítida e clara. Não é uma questão de velocidade em si, é uma questão de fluxo, um rio de palavras e, se as palavras forem boas, deixe que elas fluam com facilidade. Chega de carbonos, chega de reescrever. Antes, eu precisava de uma noite para escrever e a noite seguinte para corrigir os erros e a bagunça da noite anterior. Erros de ortografia, de tempos verbais etc. podem agora ser todos corrigidos na cópia original sem ter que datilografar tudo de novo, escrever por cima ou rasurar. Ninguém gosta de ler uma cópia rabiscada, nem mesmo o escritor. Sei que tudo isso pode parecer frescura e excesso de zelo, mas não é, tudo o que faz é deixar que a força ou sorte que você possa ter criado surja claramente. É para seu bem, realmente, e se é assim que você perde sua alma, sou totalmente a favor.

Houve alguns momentos ruins. Lembro de uma noite, depois de escrever por umas quatro horas, que achei que tinha tido uma sorte incrível quando – bati em alguma coisa – houve uma descarga de luz azul e as várias páginas que tinha escrito desapareceram. Tentei e tudo para trazê-las de volta. Simplesmente desapareceram. Sim, eu tinha posto em “Salvar tudo”, mas não fez diferença. Isto já tinha acontecido outras vezes, mas não com tantas páginas. Vou te contar, foi a mais terrível das sensações quando as páginas desapareceram. Pensando bem, já perdi três ou quatro páginas da minha novela outras vezes. Um capítulo inteiro. O que fiz foi simplesmente escrever tudo de novo. Quando você faz isso, você perde alguma coisa, pequenos detalhes não voltam, mas você também ganha alguma coisa, porque quando você reescreve você deixa de fora partes de que não gostou muito e acrescenta partes que são melhores. E daí? Bem, daí é que é uma longa noite. Os passarinhos já acordaram. Minha mulher e os gatos acham que fiquei louco.

Consultei alguns especialistas sobre a ‘luz azul’, mas nenhum conseguiu me dizer nada. Descobri que a maioria dos experts em computador não são muito espertos. Acontecem coisas confusas que não estão nos livros. Acho que sei uma coisa que poderia ter recuperado o trabalho depois da ‘luz azul’...

A pior noite foi quando sentei no computador e ele ficou completamente maluco, mandando bombas, sons estranhos e altos, momentos de escuridão, treva mortal, tentei, tentei e não consegui fazer nada. Daí, reparei no que parecia ser um líquido que tinha endurecido sobre a tela e ao redor da abertura perto do ‘cérebro’, a abertura onde se colocam os disquetes. Um dos meus gatos tinha mijado no computador. Tive que levar para a loja de computadores. O mecânico tinha saído e quando um vendedor retirou uma parte do ‘cérebro’ um líquido amarelo espirrou sobre a sua camisa branca e ele gritou ‘mijo de gato!’. Coitado. Coitado. De qualquer forma, deixei o computador. A garantia não cobria nenhum dano por mijo de gato. Tiveram que tirar, praticamente, todas as entranhas do ‘cérebro’. Levaram oito dias para consertá-lo. Durante este período, voltei à minha máquina de escrever. Era como tentar quebrar pedras com as mãos. Tive que aprender a datilografar de novo. Tinha que ficar bêbado para conseguir que as palavras fluíssem. E, mais uma vez, era uma noite para escrever e outra para arrumar. Mas ainda bem que a máquina estava lá. Ficamos juntos por mais de cinco décadas e tivemos ótimos momentos. Quando peguei o computador de volta, foi com certa tristeza que recoloquei a velha máquina no seu canto. Mas voltei ao computador e as palavras voaram como pássaros enlouquecidos. E não houve mais nenhuma luz azul e palavras que desapareciam. Estava ainda melhor. O gato ter mijado no computador arrumou tudo. Só que agora, quando saio do computador, cubro-o com uma grande toalha de praia e fecho a porta.

Sim, esse tem sido meu ano mais produtivo. O vinho fica melhor se for envelhecido adequadamente.

Não estou competindo com ninguém, não tenho ilusões com a imortalidade, não estou nem aí pra ela. É a AÇÃO enquanto você está vivo. Os partidores se abrindo na luz do sol, os cavalos mergulhando na luz, todos os jóqueis, bravos e pequenos diabos em sua seda brilhante, indo fundo, fazendo acontecer. A glória é o movimento e a audácia. Que a morte se foda. É hoje e hoje e hoje. Sim.”


(Charles Bukowski, trecho de seu diário retirado de O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio, 1998, L&PM Pocket, tradução de Bettina Gertum Becker). 

terça-feira, 15 de março de 2016

a naturalização do horror


“Em consideração pelos pais, durante o dia ele não queria mostrar-se à janela; mas nos poucos metros quadrados do chão também não podia se arrastar muito; já durante a noite suportava mal ficar deitado quieto; a comida logo não lhe oferecia o menor prazer; e assim, para se distrair, ele adotou o hábito de ziguezaguear pelas paredes e pelo teto. Gostava particularmente de ficar pendurado no teto; era muito diferente de permanecer deitado no chão; respirava-se com mais liberdade; uma ligeira vibração atravessava o corpo; e, na distração quase feliz em que Gregor lá se encontrava, podia acontecer que, para sua própria surpresa, ele se soltasse e estatelasse no chão. Naturalmente tinha agora sobre o corpo um poder muito diverso do que antes e mesmo com uma queda tão grande como essa não infligia danos a si mesmo. A irmã notou logo a nova diversão que Gregor havia descoberto – ao rastejar ele deixava aqui e ali vestígios da sua substância adesiva – e então ela pôs na cabeça que devia dar a Gregor a possibilidade de rastejar na extensão máxima do quarto, retirando os móveis que o obstavam, sobretudo o armário e a escrivaninha.”


(Franz Kafka, A metamorfose, 1915, Ed. Brasiliense)

domingo, 6 de março de 2016

Tentativa de resenha: "Dublinenses", James Joyce


Dublinenses, primeiro livro a ser publicado por James Joyce, com apenas 25 anos, reúne 15 contos que, para além de narrar um trecho da vida de seus personagens, narra a Dublin do início do século XX. A história da Irlanda é percorrida através dos passos de personagens como Eveline, do conto que recebe seu nome, que planeja fugir com o namorado marinheiro na intenção de se libertar do pai violento e do peso da vida doméstica; e Farrington, do excepcional Partes complementares, trabalhador que, após o estresse causado pelo trabalho, demite-se e gasta o seu tempo pelos bares da capital irlandesa. Encontramos, através da vida humana apresentada, uma Dublin economicamente decadente, com crise de inferioridade perante outros países, mas ainda conservadora em relação às tradições, principalmente às cristãs.

Seus personagens, em diferentes contos, caminham pelas mesmas ruas e temos a impressão de que, em diversos momentos, eles se encontram, mas não se reconhecem. Nós mesmos nos sentimos percorrer lugares conhecidos, conforme o livro vai avançando. O autor trabalha bem esse sentido de continuidade geográfica, nos informando de que é a cidade sua matéria-prima. A cidade que mora em cada uma das pessoas descritas. A palavra dublinenses tanto pode ser compreendida como “os nascidos em Dublin”, quanto “as coisas de Dublin”. Cidade e indivíduo se fundem.

Em livros de contos, gosto do efeito de abandonar os personagens em um momento específico de sua vida. Há tempo suficiente para o apego, mas a despedida chega muito depressa. O que sobra é a sensação de incompletude que nos acompanha, no que quer que façamos. O conto nos lembra de que a vida, nossa vida, nunca estará completa. Acompanhamos a existência do outro apenas por um trecho, um número pequeno de páginas. Depois o abandonamos. Depois o outro nos abandona. E é hora de partir para uma narrativa nova. Que dá lugar à outra. No fundo, aprendemos a lidar com despedidas ao lermos livros de contos. James Joyce nos ensina bem.

Destaque para: Depois da corrida, Partes complementares, Um caso doloroso e Os mortos.



Dublinenses
James Joyce
1914
L & PM Pocket
216 páginas.

Avaliação: 4/5

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Tentativa de resenha: “Deixe a luz acesa”, Ira Sachs, 2012

Daniel,

Erik, o protagonista de Deixe a luz acesa, é um cineasta sem sucesso profissional que acaba de terminar à distância um relacionamento e, na primeira cena do filme, procura parceiros sexuais num chat por telefone. Encontra um e viaja para conhecê-lo. Caminha pelas ruas da cidade. É noite. Ele se mistura às ruas. Após a transa, o parceiro avisa: tenho namorada, não se anime muito. É uma pena, Erik suspira, responde e sai. Encontra um novo parceiro. Um homem que só quer exibir seu corpo escultural. O olhar de Erik é o mesmo tanto para o primeiro, quanto para o segundo parceiro. Um dia, encontra Paul, advogado recém-saído de um relacionamento com uma mulher. Eles se apaixonam. Paul é viciado em crack. O relacionamento dura dez anos. Na última cena, Erik novamente está caminhando pelas ruas da cidade. É dia. Ele está de costas para a câmera e não é possível ver seus olhos, o que eles dizem. Seu corpo se afasta até se perder de todo. Perder-se entre as pessoas, perder-se num fade out que é o resto da caminhada, a subida dos créditos. Erik continua.



segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Tentativa de resenha: "A cor da ternura", Geni Guimarães



A cor da ternura é autoficção. A autora Geni Guimarães retorna à infância no interior de São Paulo para recontar história que é sua e de muitas outras mulheres. A personagem Geni é uma criança negra que vive com os pais e os irmãos numa fazenda, onde trabalham. O livro narra sua trajetória: do ciúme do irmãozinho que está prestes a nascer, passando pela descoberta de sua raça na ponta do dedo inquisidor, até a vida adulta. Embora seja uma menina criativa e avoada, um dia tenta tirar a cor negra de sua pele com tijolo triturado, bom para remover carvão do fundo das panelas. Noutro, véspera de seu primeiro dia de aula, pergunta à mãe, que lhe trança o cabelo, por que ela deve ir tão arrumada e Janete pode ir de nariz escorrendo. Porque Janete é branca, a mãe não hesita e responde.

Essa tensão racial percorre todos os capítulos do livro. A autora equilibra a dureza da constatação do racismo com a singeleza do olhar de sua protagonista. E essa conciliação, ao invés de aliviar o verbo, torna tudo ainda mais pesado. Geni escreve a escrita das pedras. Narra na intenção da trombeta.

A literatura juvenil da autora é capaz de satisfazer crianças, adolescentes e adultos. A linguagem direta, exigida por esse nicho de produção literária, tanto facilita a compreensão dos mais novos, quanto aprofunda o sentido para os mais velhos. Diz exatamente como devem ser ditas as verdades dolorosas.

Há ternura, no entanto. E as sutilezas aparecem na forma de engasgo. Geni Guimarães, assim como Conceição Evaristo, Miriam Alves, assume a postura de escritora afro-brasileira que decidiu não se manter mais engasgada. A cor da ternura, mais do que livro, é grito. Engasgo transferido. 



A cor da ternura
Geni Guimarães
1989
Ed. FTD
93 páginas
Avaliação: 3,5/5

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Noticiário: fev/2016

- Vou me mudar para Belo Horizonte. Cursar Letras na UFMG.

- O artigo “Práticas pedagógicas libertadoras e a vacilação” foi publicado na revista Conhecimento Prático – Literatura deste mês. O periódico pode ser encontrado nas bancas de todo o Brasil.





Bom fevereiro. 

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Entrevista

Conduzi uma entrevista com o fotógrafo Danilo Nascimento para O Salto. Conversamos sobre o que a imagem revela ao indivíduo que fotografa, ao indivíduo fotografado, ao espaço. O papo foi bom. Pirapora continua bem representada. 

Tudo corre melhor agora, diga-se de passagem. Há um valor terapêutico em dizer a si mesmo que tudo vai bem. Digamos, portanto. Vai bem.

Clique na imagem para se redirecionar à entrevista. E boa leitura. 




pela segunda vez, espécie nova


domingo, 31 de janeiro de 2016

Sertão Urbano

"Os cavalos costuram o trânsito congestionado. Alguns param, encostam seus focinhos nos vidros, assombram as pessoas, depois saem. Outros parecem perdidos: correm, param, retrocedem, trotam de um lado a outro da mesma via. Surgem mais oito, Mayana conta. Finalmente, olha para trás e vê que corre em sua direção um número de cavalos equivalente aos carros parados. Olha outra vez para frente, empurra fortemente suas costas contra o banco, coloca o cinto de segurança. Não há mais ninguém do lado de fora, exceto os motociclistas, que não têm onde se esconder."


(Clique na ilustração abaixo para ler na íntegra crônica nova escrita para O Salto. Uma crônica de cavalo.)


terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Tentativa de resenha: "Cartas da mãe", Henfil


De 1977 a 1980, o cartunista Henfil escreveu uma coluna, para a revista Isto é, que consistia em cartas endereçadas a sua mãe. Em 1977, quando recebeu o convite e a ideia, ele vivia em Natal (RN) e ela, no Rio de Janeiro; o irmão Betinho estava exilado no Canadá pela ditadura que, no discurso, abria-se lenta e gradualmente para a democracia. Henfil utilizou as cartas para criticar o governo e matar saudade dos seus.

Este livro reúne os textos escritos durante esse período. Neles, Henfil mescla características de crônica política e de de carta pessoal. Sua genialidade aqui foi cutucar o governo com humor e afeto. Sim, o afeto cotidiano das conversas com sua mãe. Ele, inclusive, atribuiu à destinatária tão ilustre o fato de a censura nunca ter vindo: É como se eu estivesse escondido debaixo da saia da mãe. Tinham que passar por cima dela pra me pegar.

Através das cartas, acompanhamos a história do Brasil desse período – greves no ABC paulista, greves gerais, campanha pela Anistia, prisões políticas, saudade do irmão, angústia, medos, apertos – e o fazemos através de lentes assumidamente subjetivas. Não havia apenas a pretensão de objetividade que se espera de alguém que comenta a realidade do seu país. Pelo contrário. Henfil tecia comentários políticos, mas, no final, despedia: A benção do seu filho.

Há ainda que ser ressaltado o forte caráter humorístico e irônico – herança do cartum –, além da coloquialidade. Certamente, esse foi outro motivo para a censura não ter vindo. É esperar muito que militares tão preocupados em prender, exilar, torturar, calar vozes, entendam de ironia. Entendam a força crítica de cartas tão afetuosas à mãe, uma “senhorinha inofensiva”, fazedora de biscoitos. Biscoitos que, isso é certo, às vezes não ficavam bons – eram os tempos. (...) Acho que a goma não é boa, da outra vez vai melhor, reflete Dona Maria.


(trechos aqui e aqui)


Cartas da mãe
Henfil
1980
Ed. Codecri
225 p.

Avaliação: 3,5/5

“Lembrei que Rômulo também estava morto e comecei a chorar tão sentida que se viu obrigada a esquecer seus mortos para me consolar. Disse que não há morte definitiva, nem sequer para ela, uma materialista. Que morte e vida se integram e se completam tão perfeitas como um círculo e por isso meu irmão continuava vivo: a vida precisa da morte para viver, “não sei explicar, entende?” Explicou.”


Lygia Fagundes Telles, As meninas, 1973

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Tentativa de resenha: "Um affair freudiano - Os escritos de Freud sobre a cocaína", Oscar Cesarotto


No fim do século XIX, iniciando sua carreira científica, o jovem Sigmund Freud comprometeu-se com o estudo dos benefícios da cocaína – alcaloide da planta de coca, advinha da América do Sul – em diversos usos terapêuticos: estimulante, anestésico, supressor da dependência de morfina, entre outros. A substância ainda era praticamente desconhecida na Europa e Freud foi um dos seus mais dedicados divulgadores. O cientista a estudava com o entusiasmo de quem sabe estar diante de uma descoberta valiosa. Movia-o o desejo de entrar para a história da ciência, previsão feita ainda em sua infância: uma curandeira disse para sua mãe que ele seria uma personalidade importante e esse destino antecipado lhe perturbou durante a vida inteira ao ponto de, antes de morrer, ainda estar insatisfeito consigo, por pensar não ter cumprido a profecia.

Freud acreditava que o legado que deixaria para a ciência seriam seus estudos sobre a cocaína. Porém, com o avançar dos experimentos em amigos, pacientes e, principalmente, em si mesmo, a substância revelou-se capaz de criar dependência química tanto quanto a morfina e extrapolou os limites clínicos. Ainda em fins do século XIX, Freud foi responsabilizado moralmente pelo alastramento do cocainismo. Sua pesquisa foi um fracasso. E, não obstante as tentativas de se livrar desse passado, seu inconsciente já havia sido marcado por ele.

Este livro de não-ficção é dividido em três partes: na primeira, percorre a história do cientista jovem e sua ligação com a cocaína; na segunda, compila todos os artigos científicos de sua autoria sobre o assunto e, na última, contextualiza o impacto da substância no final do século XX, abordando questões econômicas, sociais e políticas. O autor foi muito feliz ao incluir essa terceira parte, apresentando as consequências, um século depois, do entusiasmado estudo. Outro ponto a ser ressaltado é o fato de que, embora seja livro específico da área psicanalítica, sua linguagem, por não ser tecnicista, pode ser apreendida sem dificuldade por leigos.

Para além das questões biológicas e químicas, interessou-me especialmente a análise da história dos fracassos. Um fracasso específico que, não obstante ter sido silenciado, reverbera até hoje. Impossível não se perguntar se o contexto atual de tráfico e criminalidade envolvendo a cocaína seria diferente se um cientista pretensioso não tivesse um dia se maravilhado por seus efeitos clínicos. Ou, ainda, o quão subaproveitadas para fins médicos são algumas substâncias consideradas ilícitas pelo Estado. O que há para além do tabu das drogas? 




Um affair freudiano - Os escritos de Freud sobre a cocaína
Oscar Cesarotto
1989
Ed. Iluminuras
131 páginas

Avaliação: 3/5

sábado, 9 de janeiro de 2016

Tentativa de resenha: O livro dos sonhos, Jack Kerouac


A proposta é simples: escrever os sonhos da forma como eles vêm pela manhã: fragmentados, esmaecendo-se. Kerouac queria ouvir o inconsciente através de sua própria linguagem, sem a edição natural da fala e do pensamento. Acordava e, ainda sonolento, descrevia em sua agenda as imagens vistas durante o sono. Esse impulso resultou em O livro dos sonhos, obra de textos curtos e, por vezes, inacabados – como as próprias visões noturnas o são. As imagens se misturam e não há qualquer esforço do autor em se fazer entender. Por isso, a linguagem é o grande trunfo deste livro, a linguagem típica da geração beat: espontânea e fluida. Vários personagens de suas outras obras – On the road, Os subterrâneos – reaparecem em novas situações, sem nenhuma explicação especial, a não ser a de que o espírito não descansa, o cérebro se agita, a lua some e todo mundo tapa a cabeça com o travesseiro, usando touca de dormir, como afirma o autor na introdução. O grau de libertação através da linguagem atinge um extremo e é impossível, enquanto escritor, não se deixar contaminar. Extremos indicam caminhos.

Porém, o grande problema da obra é que, devido às narrativas serem curtas e desconexas, não há criação de vínculo efetivo com o leitor, o que prejudica a permanência na leitura. Chega um ponto em que o entendimento da proposta estética se consolida e não há muitas razões para seguir lendo. No entanto, para aqueles que não se importam em saltar páginas, vale a pena tê-lo sempre por perto, acordar pela manhã, abrir numa página qualquer, misturar seus sonhos aos do autor. Quem sabe, fazer seu próprio registro.



O livro dos sonhos
Jack Kerouac
1961
L&PM Pocket
250 páginas

Avaliação: 3/5

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Sete tentativas de perdão

"Li num bar: perdão só amanhã."


(Clique na imagem abaixo para ler na íntegra crônica escrita para O Salto. Crônica para ensaiar o perdão.)



terça-feira, 5 de janeiro de 2016

“Encaro o sol até a cegueira, não, não quero, agora não. Estava tão contente pensando só em letras e de repente elas foram se compondo, tão perigosas quando se juntam. Mas na raiz são descomprometidas. Umas crianças, A, B, H, M, O... Tão raro o X. Em declínio, o Z, rei desmemoriado, o irmão gêmeo S com a astúcia de um usurpador. Ponho o dedo em cima do F desventrado que Irmã Bula bordou, as letras também levam facadas no ventre, tiros no peito, socos, agulhadas, coices – também as letras são atiradas ao mar, aos abismos, às latas de lixo, aos esgotos, falsificadas e decompostas, torturadas e encarceradas. Algumas morrem mas não importa, voltam sob nova forma, como os mortos.”


- Lygia Fagundes Telles, As meninas, 1973