sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Práticas pedagógicas libertadoras e a vacilação


Trabalho como educador de língua portuguesa, literatura e redação numa turma de nono ano, ensino médio e em turmas de pré-ENEM e pré-concursos públicos. Hoje, cheguei em casa do trabalho um tanto atravessado por uma experiência em sala de aula, e fui ler a coluna de Márcia Tiburi, na Revista Cult de junho (número 202): Falar sozinho. O texto discute o modo de pensar autoritário, que nega e mesmo suprime qualquer possibilidade de diálogo, e estabelece distinção entre esse regime de pensamento e outro, democrático:


Conversar com quem opera dentro do paradigma de pensamento autoritário torna-se um desafio para quem opera no paradigma de pensamento democrático. A impossibilidade do diálogo constitui a vitória do pensamento autoritário. Mas para o regime de pensamento democrático, em si mesmo voltado ao outro, em si mesmo aberto, em si mesmo esperançoso, ele representa o experimentum crucis do conhecimento que não é apenas uma descrição do mundo, mas uma operação de transformação do mundo.


Não é a primeira vez que leio texto da mesma autora que problematiza a educação (nesse caso, também a educação) – em Polifonia do silêncio, publicado no mês de maio na mesma revista, ela evocava a importância pedagógica do silêncio vivo (o contrário de mutismo) na sala de aula. Em Falar sozinho, porém, a leitura me remeteu a minha experiência com os(as) educandos(as), aquela que me trouxe atravessado para casa.

De arquitetura simples, eu havia planejado uma aula de oficina de texto, para as turmas do nono e primeiro ano, que funcionaria a partir do estímulo à produção de uma síntese criativa. Os(as) alunos(as) receberiam um texto, leríamos juntos(as), discutiríamos seu conteúdo, e depois lhes orientei para que buscassem trechos (palavras, frases, parágrafos) que lhes tivessem subjetivamente impressionado. Após essa seleção individual, teriam que recortar esses trechos e reorganizá-los de modo que produzissem, ou não, algum sentido novo. O texto deveria ser curto, poderia conter uma frase, inclusive. O objetivo era sua participação ativa tanto na compreensão do texto original, intrometendo-se literalmente nele, recortando-o, selecionando as melhores partes; quanto na elaboração de um novo sentido a partir das palavras selecionadas originalmente por outro autor(a). Nasceria, desta forma, uma relação de coautoria do texto novo.

Os escritos utilizados como base foram: Sobre ser gorda e a farsa da feminilidade, de Beatriz Rodrigues, publicado virtualmente na Revista Capitolina, para a turma do nono ano; e o conto Tentação, de Clarice Lispector, para a outra turma. A seleção dos textos, mais tarde percebi, colaborou para o bom resultado da experiência, pois tanto houve uma identificação instantânea com o assunto discutido no primeiro (o que aumenta o interesse na leitura e no próprio desenrolar da atividade), como uma quase garantia de bons frutos devido ao trabalho poético do segundo.

Enquanto as aulas aconteciam, compreendi aos poucos as diversas camadas da metodologia aplicada. Com cada aluno(a) reorganizando palavras e frases a partir de uma orientação subjetiva, percebi que um texto contém em si infinitos outros, infinitas possibilidades de leitura e produção de sentido – conclusão nada nova, mas só então apreendida. Além disso, o processo de leitura me pareceu ainda mais honesto graças à possibilidade física de recortar o texto e selecionar apenas aquilo que lhes interessava – muitos somente compreenderam o conteúdo original desta forma, a partir de suas partes. Sem contar, claro, o empoderar-se enquanto ser com capacidade de escrita. Uma aluna do primeiro ano, aparentemente desanimada no início da aula, não havia entendido o conto de Clarice apenas com a primeira leitura. Mas, quando conseguiu produzir o seu próprio texto sintético a partir do conto, ela, mais do que compreender o enredo original, enxergou-se nele. Admirada, me disse no final da aula: “Professor, eu recortei bem aleatoriamente os trechos, mas quando li, o texto era sobre mim!”.

O resultado foram sínteses como estas:


- Maria Victória, aluna do nono ano & Beatriz Rodrigues, colunista da Revista Capitolina, a partir do texto Sobre ser gorda e a farsa da feminilidade


- Mateus Aranha, aluno do primeiro ano & Clarice Lispector, escritora, a partir do conto Tentação


- Anne Gabrielle, aluna do primeiro ano & Clarice Lispector, escritora, a partir do conto Tentação

A poesia e a profunda compreensão do mundo contidas nesses textos me atravessaram após o trabalho, me fizeram pedir abrigo em casa, tatear inconscientemente por algo só compreendido após indicação do texto da Márcia Tiburi. No fundo, foi a esperança, vital ao regime de pensamento democrático, o que me deixou atravessado. Sua capacidade atestada de transformação do mundo.

Mas o que me motiva a compartilhar essa experiência é o desejo de que todos saibam que esse regime de pensamento não está pronto, não é uma cartilha ou um livro didático – na minha prática em sala de aula, inclusive, percebi o quão aprisionantes são os livros didáticos. E, por não ser tão simples como seguir qualquer matriz curricular, é esperado que o modo de pensar aberto ao outro, ao diálogo, vacile, erre, pois a vacilação e o erro são típicos de qualquer processo aberto a si mesmo, honesto.

Há uma angústia e ansiedade grandes entre educadores comprometidos com uma educação libertadora em relação às metodologias testadas, à eficiência em dialogar, em atingir o outro com alguma reflexão verdadeira e despertar nele(a) inquietudes subjetivas e alguma consciência do mundo em que está. Este texto foi escrito para dizer: calma, assumir esse papel de educador também significa assumir-se educando, passível de erros, não exclusivo detentor de verdades, não exclusivo detentor de conhecimento, educar justamente significa troca. Seu saber mais o do outro formarão, enfim, o conhecimento, resultado de uma construção conjunta. Ansiedade e angústia só acontecem devido à falta de confiança que se tem em relação à existência do saber do outro. Confiar que nossos alunos e alunas têm tanto a nos oferecer quanto nós a eles(as) nos faz relaxar mais na prática educacional diária, o que alivia a pressão por eficiência tão típica do capitalismo, além de empoderá-los(as).

Não custa lembrar que essas contradições, erros e falta de segurança em relação a propostas pedagógicas emancipatórias só existem porque teimamos em pensar e praticar uma educação libertadora em um sistema que trata o aluno(a) como produto a ser escoado para o mercado. Ou seja, na maioria das vezes não são causados por problemas individuais, falta de competência do educador-educando, e sim por toda a pressão estrutural existente para que sejamos os controladores das máquinas. Resistir também envolve quedas. Conhecer-se, conhecendo o(a) outro(a), envolve vacilações. Não admitir isso é agir segundo as metas de eficiência impostas.

Este texto é para que todos e todas eduquem, e permitam-se ser educados(as), com os ombros mais relaxados, tensões mais dissipadas, silêncios mais vivos, corpos mais abertos ao que nascerá do encontro. Precisamos, enfim, saber incorporar tropeços. Utilizá-los como método.

 
Antes de acabar: saravá, Paulo Freire.


A quem interesse, o material utilizado em sala:

Tentação, Clarice Lispector.


2 comentários:

  1. Ser ordinário é a regra do sistema. A escola realmente precisa ser reinventada como um lugar de pessoas que pensam: Alunos e professores.

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  2. Eu amo os textos da Márcia, ela de fato não se importa com as padronizações, a ponto até de ganhar tamanha liberdade, que essas padronizações parecem não existir. Creio que é possível colocar o pensamento subjetivo, nas salas de aula. Porque é isso que necessitamos até hoje, o pensamento subjetivo, de autocrítica, e de olhar para si e para o outro, relativizando os vários conhecimentos e culturas. E nada melhor que arte e literatura para criar cabecinhas pensantes. Cinema, literatura, artes plásticas, encantam e chamam para um pensamento além do que os olhos sempre receberam.

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