segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Carnaval, 1978

(desfile do bloco Galo da Madrugada, Recife, Pernambuco, 1978)


“Natal, 8 de fevereiro de 1978

Dona Maria,

Lembra quando chegava o carnaval e a senhora mandava a gente pra igreja de S. Efigênia ouvir o pároco dizer pra tapar os olhos, os ouvidos e o nariz pra Satã não infiltrar na gente? Ele dizia que o capeta tinha sido solto propositadamente por Deus pra testar os homens, as mulheres e, principalmente, as crianças.

Acabada a via-sacra, cadê que a garotada queria sair da igreja? Ficávamos todos embolados na porta. De vez em quando um valente se jogava no incerto no maior carreirão. E quem tinha ido com a mãe, ganhava vinte irmãos agarrados na barra da saia dela. Uma vez eu saí e nem dei dez passos e um grupo de gatinhas pulando e jogando lança-perfume virou a esquina logo na minha frente. Ah, mãe pra que? Eu corri até em casa sem coragem de olhar pra trás, esperando que as filhas de Lúcifer (tinham rabos, eu vi!) me agarrassem de vez e definitivamente.

Depois perdi o medo do carnaval, ou melhor, o carnaval acabou. Nunca mais vi o povo pintando o capeta no meio da rua. O carnaval passou para a clandestinidade e só se brinca hoje em aparelhos cercados de toda a segurança, como o Monte Líbano.

Ano passado me chamaram pra sair na Banda de Ipanema. Eu tentei. Mas, no terceiro pulinho, olhei pra cara do povo assistindo e fiquei no maior constrangimento. Como é que eu ia cantar e pular na frente de quem tá com fome, na frente de quem tem filho preso, cassado ou exilado, na frente de quem tem mãe lavando privada pra viver?

Um folião mais experiente me aconselhou: enche a cara que você perde o medo do povo... Eu, hein? Sei muito bem o meu lugar no topo da pirâmide social pra sair por aí provocando a massa.

Bom, agora estou doido pra pular, pra brincar, e de novo não vou ter coragem de encarar o povo. Só me resta fazer um apelo ao presidente Geisel:

- Ô presidente! Será que não dava pra libertar o povo de maneira menos gradual e menos lenta? Dava pra soltar o povo antes do dia 5? Solta ele pra gente brincar sem constrangimento?

Benção, mãe?


Henfil”


(Henfil, Cartas da mãe, Ed. Codecri, Rio de Janeiro, 1980)


(Trio Saborosa, Salvador, Bahia, 1978)

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