domingo, 22 de fevereiro de 2015

Tudo está inacabado

Decidi não mais divulgar minha produção literária aqui no blog. A certeza do inacabamento de tudo tem me afligido. Não sou eu os poemas de 2012, 2013, embora reconheça meu estado de espírito naquele tempo-espaço, motivações, modo de escrever torto e incipiente. Ainda escrevo incipientemente. Mas aprendi o valor da respiração do texto. Publicizar texto inacabado é como corromper sua infância, juventude, abortá-lo. Preciso deixar que cresça. O tempo é longo. Tempo para palavra amadurecer, tempo para mim. Amadureço. Ciclo infindável de amadurecimento. Tudo restará inacabado, sei. Mas há um momento de cansaço do texto, derrota numa guerra sem fim. Este é o momento da publicidade, se vier; ponto em que desisto. Desistência porque morto. Palavra mata.

Vladimir Veidlé, escritor e crítico que conviveu com a poeta russa Anna Akhmátova (1889-1966) conta o seguinte sobre o processo criativo dela:

“Ela me contou que nunca usava lápis e papel ao elaborar os seus poemas. Trabalhava em cada verso durante muito tempo; porém, só os anotava depois de o poema ter chegado à sua forma final, às vezes até uma ou duas semanas depois de já o ter recitado em público para seus amigos. Dizia que o processo de escrever, de segurar uma caneta na mão, lhe parecia cansativo e, por isso, não gostava de escrever cartas. Sua letra era laboriosa e desajeitada, como acontece com as pessoas que não estão acostumadas a escrever. Lembro-me de que, uma vez, lhe pedi que pusesse dedicatórias em dois livros que me tinha dado. A primeira, ela já fez bem curtinha; quando chegou na segunda, já cansada, limitou-se a assinar seu nome. Era muito típico de sua maneira de ser, essa peculiaridade de memorizar o poema por longo tempo antes de confiá-lo ao papel. Com que atenção ela deve ter ouvido a música interior das palavras, com que modo incorruptivelmente terno deve tê-las carregado consigo, através de sua longa vida, até a morte.”

É desse tempo de calma e espera que preciso. Escrever demanda isso de mim. Paciência. Compensarei a falta de escoamento da produção tentando publicar em revistas e suplementos literários o que alcançar esse tempo de amadurecer cíclico. Sabendo não haver amadurecimento completo, reformulo: escoarei palavra que alcançar o tempo de cansaço finito. O resto é ansiedade, tentativa, desespero. Desespero também possui seu valor, decerto. No entanto, opto pela escrita da calma. Receio que Anna Akhmátova somente escrevia seus poemas no papel quando já estivesse cansada, morta. Assumir os suicídios.


ps: quem se interessar por algum texto em particular e quiser utilizá-lo para algo, basta entrar em contato por aqui, pelo facebook, ou por e-mail: douglasdeoliveiratomaz@gmail.com




(Aqui onde tudo termina, Chana de Moura, 2014)


segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Anna Akhmátova

"Tua casinha branca, teu tranquilo jardim abandonarei.
Minha vida passará a ser solitária e radiosa.
Mas a ti, a ti eu celebrarei em meus versos,
como mulher alguma jamais fez.
Tu, querido, relembrarás a tua amada
no paraíso que criaste para os olhos dela.
Enquanto isso, eu comercio estes tesouros:
teu amor, tua ternura, vou vendê-los."


- Anna Akhmátova, 1913


segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Carnaval, 1978

(desfile do bloco Galo da Madrugada, Recife, Pernambuco, 1978)


“Natal, 8 de fevereiro de 1978

Dona Maria,

Lembra quando chegava o carnaval e a senhora mandava a gente pra igreja de S. Efigênia ouvir o pároco dizer pra tapar os olhos, os ouvidos e o nariz pra Satã não infiltrar na gente? Ele dizia que o capeta tinha sido solto propositadamente por Deus pra testar os homens, as mulheres e, principalmente, as crianças.

Acabada a via-sacra, cadê que a garotada queria sair da igreja? Ficávamos todos embolados na porta. De vez em quando um valente se jogava no incerto no maior carreirão. E quem tinha ido com a mãe, ganhava vinte irmãos agarrados na barra da saia dela. Uma vez eu saí e nem dei dez passos e um grupo de gatinhas pulando e jogando lança-perfume virou a esquina logo na minha frente. Ah, mãe pra que? Eu corri até em casa sem coragem de olhar pra trás, esperando que as filhas de Lúcifer (tinham rabos, eu vi!) me agarrassem de vez e definitivamente.

Depois perdi o medo do carnaval, ou melhor, o carnaval acabou. Nunca mais vi o povo pintando o capeta no meio da rua. O carnaval passou para a clandestinidade e só se brinca hoje em aparelhos cercados de toda a segurança, como o Monte Líbano.

Ano passado me chamaram pra sair na Banda de Ipanema. Eu tentei. Mas, no terceiro pulinho, olhei pra cara do povo assistindo e fiquei no maior constrangimento. Como é que eu ia cantar e pular na frente de quem tá com fome, na frente de quem tem filho preso, cassado ou exilado, na frente de quem tem mãe lavando privada pra viver?

Um folião mais experiente me aconselhou: enche a cara que você perde o medo do povo... Eu, hein? Sei muito bem o meu lugar no topo da pirâmide social pra sair por aí provocando a massa.

Bom, agora estou doido pra pular, pra brincar, e de novo não vou ter coragem de encarar o povo. Só me resta fazer um apelo ao presidente Geisel:

- Ô presidente! Será que não dava pra libertar o povo de maneira menos gradual e menos lenta? Dava pra soltar o povo antes do dia 5? Solta ele pra gente brincar sem constrangimento?

Benção, mãe?


Henfil”


(Henfil, Cartas da mãe, Ed. Codecri, Rio de Janeiro, 1980)


(Trio Saborosa, Salvador, Bahia, 1978)