sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

pedrinhas

"acho uma calçada diante de uma casa com mil pedrinhas lindas de enfeite encaixadas em buraquinhos - roubo seis ou sete, levo na mão, deixo cair uma embaixo do pára-choque de um carro, pego de novo." 

(J. Kerouac) 












casa da dani, porto alegre, rio grande do sul
janeiro/2015

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

7 livros para 2014


Nunca fui leitor precoce, no sentido de antecipar leituras clássicas. Criança, li literatura infantil, pré-adolescente, infanto-juvenil, na adolescência lia os best-sellers e senti pela primeira vez a graça de possuir um livro, até então, pegava todos em bibliotecas. Foi mágico. Lia obra clássicas esparsamente findando a adolescência, nunca me obriguei leituras, acredito ter cada pessoa seu processo próprio de amadurecimento enquanto leitora. Não se avexe.

Nos últimos dois, três anos sinto-me mais seguro para compreender os clássicos, mas ainda não li grandes autores como James Joyce, Cortázar, Virginia Woolf, Sylvia Plath, uma hora me aprumo. O que me importa é me ouvir, acompanhar meu próprio tempo. Se tem expressão que detesto é leitura obrigatória. Desta maneira, sobretudo respirando, li obras lindas no último ano. Preparei uma lista de sete livros, somente em prosa, para compartilhar as referências. Para 2015, desejo pisar com mais firmeza. Chão a gente tece. 

Sete) Quero minha mãe, Adélia Prado, 2005, Ed. Record, 77 páginas


Nunca tinha lido Adélia, só recebido recomendações. Comecei pela prosa. Escolhi o livro aleatoriamente, me metendo em estantes de livraria. Conta história de Olímpia, mulher de 60 anos que intui sua própria morte e, de fato, descobre-se com câncer. O enredo cobre a intuição, descoberta, contar para pessoas próximas, o círculo cotidiano, fé em Deus, lembranças e referências da mãe, subjetividade e inconsciente da personagem também narradora. O que particularmente me atrai na obra é como a autora entrega apenas fragmentos da vida de sua protagonista dentro de uma linearidade. Não há divisão por capítulos, os fragmentos são dispostos em trechos curtos, às vezes um parágrafo por página. Com isso, Adélia abre nosso campo de percepção para os silêncios, faltas e engasgos. Para o mínimo, como lhe é de praxe. Toda atenção ao sutil silencioso.


Seis) Então você quer ser escritor?, Miguel Sanches Neto, 2010, Ed. Record, 220 páginas


No ano passado, ganhei menção honrosa por um conto enviado a um concurso literário promovido pelo Clesi, grupo de escritores/as organizados/as em Ipatinga – MG. Não conhecia a cidade, fui sozinho receber o prêmio. Na cerimônia de premiação, me dei conta de que eu tinha ido sem confirmar presença, logo, não sabiam de mim ali. Ouvi falarem meu nome ao microfone e justificarem minha ausência. A cerimônia acabou, não falei com ninguém, fui embora sem receber pessoalmente o prêmio e ser notado. Escrever um dia me mata de solidão. Achando tudo esquisito, fui ao shopping ao lado do auditório, entrei na livraria e encontrei este título: Então você quer ser escritor? Provocado o suficiente, comprei o livro, lembrando já ter lido resenha dele numa revista. Poderia ser anedota, mas este foi o início da minha carreira literária inexistente.

Então você quer ser escritor? reúne contos enxutos na linguagem, mas profundos e sensíveis o bastante para fazer levantar sobrancelhas, abraçar o livro, reler certos contos, ter  saudade da obra. Adoro derramamento linguístico, quando bem realizado, mas a ausência de ornamentos aqui não me impediu de gostar muito do que li. Miguel Sanches Neto, autor contemporâneo paranaense, é uma das referências na nova geração da literatura brasileira. O primeiro conto, Sangue, é preciso, redondo, impecável, nada sobra, tira fôlego em apenas quatro páginas. Mas meus contos preferidos são O tamanho do mundo – história de dois irmãos que recebem a notícia da morte do pai na escola e como a vida deles se desenrola a partir disso – e sobretudo Árvores submersas, história de um organizador de antologias poéticas que pensa em lançar um livro com poemas de um escritor desconhecido que lera há tempos. Vai atrás dele e o descobre numa cidade de interior, casa sombria, trancado dentro do quarto, sem nenhuma possibilidade de ver o mundo externo, morando apenas com a mulher, quem organiza o que escreve, deixa comida na porta do quarto e imprime seus livros. A maneira como Miguel constrói a metáfora que dá título ao conto foi um dos maiores aprendizados que tive sobre como trabalhar um texto, das coisas mais belas que li no último ano.

Cinco) A céu aberto, João Gilberto Noll, 1996, Ed. Companhia das Letras, 164 páginas


Contemporâneos, pós-modernos, tateamos nosso próprio tempo. Somos fragmentos, cacos, fluidos, trânsitos, não-identidades, inclusive literariamente. A céu aberto talvez seja o registro mais fiel ao seu tempo que eu tenha lido até então. Narrativa sem qualquer subdivisão interna (capítulos, partes), flui como sonhos, uma ação levando à outra, abstração levando à seguinte, sem qualquer interrupção. O protagonista-narrador vive só com o irmão mais novo doente, até que o leva ao front de batalha para conseguir dinheiro com seu pai, general do exército lutando numa guerra sem motivo, sem inimigo certo, guerra desterritorializada. A partir daí, o enredo envolve dispersões, não pertencimento, androginia, homoerotismo, objetificação sexual, escatologias, tédio, muito tédio e vazio, grande carga de sexo explícito, poesia delirante. Há descrição de cenas de sexo a cada duas páginas em média. O livro assusta ao leitor desavisado, mesmo aos avisados, assusta, não é texto de família. João Gilberto Noll afirma em várias entrevistas o quanto a sexualidade ocupa grande espaço em sua literatura. Para quem não o conhece, o autor gaúcho começou a publicar na década de 80 e desde então tornou-se uma das grandes referências contemporâneas para a nova geração de escritores brasileiros, além de ser muito estudado pela academia, talvez por conseguir reter com precisão as características deste tempo veloz e híbrido, da mesma forma em que desconstrói as características clássicas do texto narrativo. Nada é, tudo se move na existência dos personagens, no texto orgânico pulsante vivo. Recomenda-se pular de peito, deixar-se assustar, deixar-se enojar, deixar-se. Sinto pós-modernidade no estômago.

Quatro) O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio, Charles Bukowski, 1998, Ed. L&PM, 150 páginas


Diário pessoal escrito entre 1991-1994, com trechos selecionados pelo próprio Bukowski, foi publicado pela viúva Linda Lee Bukowski somente em 1998, quatro anos após a morte do autor. Aqui encontramos um Buk entediado, sufocado pelo cotidiano dividido entre a escrita e o hipódromo; não há mais tanto álcool, nem prostitutas, nem despejos, Bukowski agora mora confortavelmente numa bela casa em Los Angeles. Além disso, a morte é o próximo passo e o autor a sente, enfrenta: A morte vem para aqueles que esperam e aqueles que não esperam. Engana-se, porém, quem pensa ser o livro chato. O velho safado continua lá, vivo, mesmo ceticismo, mau-humor, graça seca – velho cada vez mais literalmente: Em 1989, superei uma tuberculose. Este ano, operei um olho que ainda não está bom. E dor na perna, calcanhar e pé direitos. Coisas pequenas. Pedaços de câncer na pele. A morte mordendo meus calcanhares, deixando que eu saiba. Sou um saco velho, é isso. A tríade ócio-morte-literatura, mais do que temas, são fantasmas, tormento e maravilha, rondando o escritor. O resultado, sucessão de genialidades, aulas involuntárias de escrita – tanto por sua voz inconfundível, quanto pelo que ela conta: As horas perfeitas são as que passo nesta máquina. Mas você tem que ter horas imperfeitas para ter as perfeitas. Você tem que matar dez horas para que duas vivam. O que você tem que cuidar é para não matar TODAS as horas, TODOS os anos. Em outro trecho: Escrevo uma merda diferente agora. À beira da morte, casa com piscina, Charles Bukowski ainda é rei desta merda toda. Não precisa dormir na rua, transar com prostitutas, falar palavrões, não pagar aluguel, quase morrer de hemorragia por tanto beber e fumar, para escrever bem. É preciso estar lá. Equilibrando-se numa corda bamba, mesmo confortavelmente. Lá.

(dois trechos da obra: um e dois)

Três) Capitães da areia, Jorge Amado, 1937, Ed. Companhia das Letras, 262 páginas


Capitães da areia é, sobretudo, uma obra humana. Toca o que há de mais fundo, substância que nos une, não obstante nossas diferenças; desarma todos os escudos, faz escorrer essa tal substância pelos poros, respiração, faz deitar de tanta moleza que dá. Além de tudo, é belo esteticamente, literatura fina, pura, simples. Palavra que diz. Palavra que chega. Não há enfeite linguístico, Jorge Amado constrói as sentenças e os capítulos deixando cereja de poesia sempre para o final, último suspiro.

A narrativa gira em torno do cotidiano de crianças e adolescentes moradores de rua na cidade de Salvador, Bahia. Mas esse enfoque se dá de dentro pra fora, de baixo pra cima. Por mais que seja narrado em terceira pessoa, o narrador parece fazer parte do grupo, conviver com os meninos, dormir no trapiche abandonado, furtar pequenas quantias. Jorge Amado, para escrever a obra, conviveu com moradores de rua reais, observou-os de perto. O resultado é a aproximação instantânea entre personagens e leitor(a), desarmando até os mais reacionários ao tratar da situação de rua, racismo, candomblé, machismo, menoridade penal, greves sindicais, infância abandonada de modo tão honesto. O grande feito do autor aqui é humanizar sujeitos relegados à margem da história branca, eurocêntrica, heteronormativa, patriarcal, sejam meninos de rua, praticantes de religiões de matriz africana, trabalhadores, malandros, prostitutas, mulheres. De declarada orientação marxista, Jorge Amado, mais do que problematizar questões, com literatura, apresenta possibilidades de mudança no quadro de desigualdade, aqui simbolizadas pelo personagem Pedro Bala, líder dos Capitães da Areia, quem organiza o grupo e não se contenta com destinos fadados à pobreza, marginalidade. Pedro Bala vê horizonte possível. Para toda opressão, resistência. A própria existência em condições de miséria já é resistir.

Vale ressaltar, ainda, a abordagem sobre gênero e sexualidade trazidas pelo autor. Sexualidade, primeiramente, na relação homoerótica entre os meninos de rua no trapiche. E gênero, tanto na relação de dominação dos meninos em relação às mulheres (e aqui interseccionalmente entra a questão racial, porque a maior parte das mulheres com quem eles se relacionam, principalmente em relações de abuso, são negras – a cena de estupro no areal é bem forte e não acredito ter sido intenção do autor desconstruir opressões de gênero), quanto, em outra perspectiva, a inserção de Dora na história, única menina entre os Capitães da Areia, personagem que subverte os papéis de gênero impostos à mulher naquele contexto específico, por exemplo, sair para furtar ser tarefa exclusiva de homens etc. Enfim, ainda há muito o que ser dito. Há a questão da luta de classes e do cangaço muito bem marcadas, tanto que, quando lançado, o livro teve vários exemplares queimados pela polícia do Estado Novo de Getúlio Vargas, dado o caráter subversivo.

Uma boa obra para mim é aquela que pode ser lida sob diversas perspectivas. Capitães da areia é assim. Recomendo que leiam e descubram seus próprios caminhos para análise. Em todos, encontra-se retratado um Brasil profundo, sincero, multifacetado, vibrando as cores da Bahia, o calor que vem de lá.


Dois) Morangos mofados, Caio Fernando Abreu, 1982, Ed. Saraiva, 160 páginas


Esqueçam as citações falsas do Caio Fernando Abreu. Aquele tom meloso-romântico-sentimental não é dele. Aqueles clichês todos também não. Um dos meus escritores favoritos de todos os tempos, Caio é muito mais cruel, pessimista, marginal do que essa imagem que se criou dele. Assim como João Gilberto Noll, não é um escritor de família. Os personagens deste livro podem apresentar longinquamente alguma similaridade com personagens bukowskianos, exceto pelo alto grau de politização e sexualidades não normativas. A sexualidade é um ponto importante na obra. Mas existe outro ainda mais: a política (não que sexualidade não o seja). 

Lançado em 1982, Morangos mofados, livro de contos, retrata sujeitos ressaqueados pela luta contra a ditadura; personagens antes engajados, mas que, agora, com o regime militar afrouxando o cerco, caminhando à redemocratização, perdem significativamente o sentido da vida. Os sobreviventes, conto preferido do livro e de todos os tempos, é o grande símbolo dessa fase de ressaca: dois amigos, um homem e uma mulher, marxistas ex-militantes em diálogo típico de uma boa ressaca: o cara tá indo se aventurar no Sri Lanka, e a mulher se sente traída, abandonada: Uma  certa saudade, e você em Sri Lanka, bancando o Rimbaud, que nem foi tão longe, para que todos lamentem ai como ele era bonzinho e nós não lhe demos a dose suficiente de atenção para que ficasse aqui entre nós, palmeiras & abacaxis. O tom desiludo pessimista sem caminho possível exceto ouvir Ângela Ro Ro e beber até vomitar produz aquele tipo de leitura que, de tão decadente, te faz repousar nela por um instante, seu lugar, para depois levantar alimentado pela dor do outro: ninguém é feliz o tempo todo.

O livro é dividido em três partes: O mofo, parte que retrata a repressão da ditadura, ausência de caminhos possíveis, pessimismo, deprê total; Os Morangos, com contos que partem de uma situação ruim, mas alcançam algum tipo de horizonte possível (não um otimismo cego); e Morangos Mofados, síntese das duas partes com um conto só, de mesmo título.

Caio Fernando Abreu era homossexual assumido, militou durante a ditadura, envolveu-se com drogas e morreu devido a complicações causadas pela AIDS. Viveu este período intensamente, portanto. Era um cara sensível depressivo suicida do caralho, lindão. Um ídolo. Retratou sua vida através de seus personagens, por isso, aqui, encontramos gays, lésbicas, usuários de drogas, hippies, adolescente descobrindo sua homossexualidade, entre outros desviantes às regras. Caio é referência brasileira quando se trata de homoerotismo e sexualidades não-normativas na literatura – destaque para os contos: Os sobreviventes, Terça feira gorda, Sargento Garcia e Aqueles dois.

Bonita a organicidade da obra, tanto temática quanto linguística – o belo prefácio escrito pela Heloísa Buarque de Holanda contribui muito para a orientação da análise nesse sentido. Nesta edição da Saraiva de bolso, inclusive, há uma carta incrível do autor ao jornalista e amigo José Márcio Penido, que conta o processo de criação do conto Morangos Mofados, entre outras belezas.

Sinto que rola um preconceito em relação ao Caio entre leitores, devido às citações falsas em redes sociais. Só digo uma coisa: deixe esse preconceito pra lá, caia de cabeça na obra, sofra, chore, rasgue as feridas com o dedo, como faz os personagens e o autor. Morangos mofados amargam, mas no final podem ser doces.

(trechos, citações de verdade: um, dois, três)

Um) A legião estrangeira, Clarice Lispector, 1964, Ed. Rocco, 110 páginas


Ai, ai. Em toda lista de referências, Clarice está. Muito já se falou sobre ela, não vou me alongar. Desconfio que em todas as listas de livros que eu fizer, não vai dar outra. A mulher é monstro, deusa, bruxa, todos os nomes referidos à transcendência. De alguma forma, e este é seu mistério, ela se comunica com outras dimensões da realidade escondidas da maior parte de nós. Ela se comunica. E, tão generosa, escreve para compartilhar conosco essas conversas brutas, perdições. Sua literatura são essas conversas consigo – a transcendência, afinal, podia estar dentro dela, ser ela, bastava-lhe olhar-se: ‘Eu’, tentava dizer seu corpo molhado pelas águas. Suas núpcias consigo mesma. Os contos deste livro são todos incríveis, sem exceção. Muito se fala sobre a irregularidade em livros de contos. Aqui, na minha visão, Clarice vence esse estigma: consegue doar-se da mesma maneira para cada um. Deságua. Ao final da leitura de cada conto, minha cabeça terminava pulsando, grande, marretada feito sino. Sua abstração chega ao limite no conto O ovo e a galinha, grande variação sobre essas duas imagens. Além dele, menciono de forma especial Os desastres de Sofia, não sem reafirmar a beleza de todos os contos, indistintamente. Clarice é grande demais para caber numa resenha.

(trechos da obra: um, dois e três)



ps: para 2015, ler mais escritoras, escritoras negras, escritores negros. duas mulheres numa lista de sete autores, nenhuma negra, nenhum negro, não é número ocasional, reflete muito quem tem destaque na literatura brasileira, reflete muito como são construídas nossas referências. ;)

até. 

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

dos acontecimentos

"Tão vastos e intemporais, os acontecimentos brotam de algum centro mais intenso, formando vagos pontos distantes, só para serem encontrados de novo, quando os núcleos e os universos se deslocam para outros sonhos."

J. Kerouac




taquara, comunidade naturista colina do sol, rio grande do sul
janeiro/2015

Estreia do "Sê-los"

Neste domingo (18), o Sê-los, curta-metragem filmado pela Fernanda Xavier e sua turma, a partir de cartas trocadas entre Brenda K. Souza e eu, estreará em Montes Claros (MG) num evento lindo, o VHS!

Quem estiver por perto, vai ter pipoca, improvisações de dança, outros curtas e música, tudo autoral. 

Toda gratidão do mundo à Fernanda e toda galera que produziu o curta, por serem criadores de belezas. Toda sorte. 


ps: estas foram as reações que tive à medida em que Fernanda me mandava os materiais produzidos; colapsos por ver minhas palavras filmadas, interpretadas por outros, velho drama do espelho: reação 1reação 2

E a gente se esbarra. 


sábado, 10 de janeiro de 2015

fachadas na cidade baixa ou devaneios diurnos

"É só quando os sonhos perdem a importância que começa a suja interferência do mal - por sonhos se entenda o que se enxerga  durante o sono - e não o que se deseja nos devaneios diurnos."

J. Kerouac











porto alegre, rio grande do sul
dezembro/ 2014

sábado, 3 de janeiro de 2015

“Fabiano ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se. Chegara naquele estado, com a família morrendo de fome, comendo raízes. Caíra no fim do pátio, debaixo de um juazeiro, depois tomara conta da casa deserta. Ele, a mulher e os filhos tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos – e a lembrança dos sofrimentos passados esmorecera.

Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas. Tirou do aió um pedaço de fumo, picou-o, fez um cigarro com palha de milho, acendeu-o ao binga, pôs-se a fumar regalado.

- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.

Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.

Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a murmurando:

- Você é um bicho, Fabiano.”

(Graciliano Ramos, Vidas Secas, 1938)