sábado, 7 de dezembro de 2013


“’Ok, vamos para minha casa’.

Eu não quero, ouviu! Eu não quero! Me deixe aqui! Eu não preciso da sua ajuda. Eu quero ficar sozinha. Eu quero ficar. Que me importa ser assaltada pelos marginais, estuprada pelos mendigos e comida pelos lobos? Que me importa que a chuva me gripe, que o vento me derrube e o diabo me carregue? Me deixe, que na minha história derramo vinho sobre sua toalha. Eu engato ré no seu carro. Eu disparo todas as balas da sua pistola. Me jogue na neve para que eu congele. Me cubra de terra para que o sol não me queime. E abra as janelas para que eu pule. Me deixe sozinha para morrer. Me deixe à mercê. Vá embora, e não apareça nunca mais por aqui. Esqueça que me conheceu. Esqueça que não me conhece. Desista de tentar. Me conhecer é impossível, mesmo com toda uma biografia. E uma funegrafia é o que eu pretendo escrever.

Não sei se ele entendeu. Mas foi.”

(Santiago Nazarian, A Morte sem Nome)

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Sê-los, o curta-metragem (2)

Fernanda,

tenho o hábito de ler alguma coisa boa antes de tentar escrever algo importante; tentativa de depurar a linguagem, exercício de trazer à tona as palavras certas, a ordem exata. Por isso, retomei a leitura de um livro de boa literatura antes de começar a te escrever este agradecimento. Mas não consegui prosseguir lendo. As palavras já estão engasgadas em mim, e, na verdade, já estavam desde antes, quando você me enviou o curta e eu senti tudo o que senti. Tentei ler algo bom antes de te escrever, porque queria te dar uma resposta à altura da poesia que vocês filmaram. Por isso, desde já peço desculpas pela tentativa frustrada. Estou de ressaca, as palavras não se firmam dentro de mim, falo sem medir, sem trabalho. Você merecia mais.

Assisti ao “Sê-los” e você me avisou que ele ainda está sem trilha e falta o “áudio tratado”, que não sei o que significa. Mas digo que gostei absurdamente do barulho dos carros, das conversas de vocês por trás da câmera falando do Festival de Gramado. Tudo tão natural que fez com que o sentido de realidade se expandisse. Prestei atenção nos ruídos ao fundo até que as palavras começaram. E como me doeram, as palavras! O ator, o personagem, começaram a ler juntos a minha carta, e, de repente, palavras que antes eram minhas, e me faziam todo um sentido pleno, passaram a ser deles, e eu me tornei um espectador de mim mesmo. Me vi refletido, borrado, do jeito que talvez eu seja, visto de fora. O Roberto tentava escrever uma carta, e ele escrevia e me dizia palavras tão duras, tão duras: era do meu coração que se tratava. E sabe quando te contam verdades, sem máscara, sem maquiagem? Sabe quando a verdade dói? Sabe quando você se olha no espelho chorando, desesperado? Sabe quando o único caminho possível para escapar da dor é a mentira? Você me fez sentir assim de novo, Fernanda. Tive que parar o vídeo diversas vezes porque estava doendo demais. Gritei.

Gritei sozinho no meu quarto escuro, fechado, gritei porque não aguentava conter dentro de mim um eu expandido. Neste instante, tive a impressão de um profundo silêncio, como se minha casa, e o resto do mundo, tivessem parado neste exato segundo para me ouvir gritando, para perguntar se estava tudo bem, se não havia mais um morto. Tive medo de virem ao meu quarto correndo, e me encontrarem assim, pequeno – a verdade das minhas palavras ditas para mim com outro tom, de outro jeito, me fez sentir pequeno. Mas ninguém veio. A impressão de silêncio foi embora e o ruído retornou junto com os carros e “a falta de trilha e de áudio tratado”. As palavras deram um tempo.

“Sem trilha, parece que o vídeo não tem fim, o filme acaba e a gente não percebe”, você me avisou com cuidado. E foi mesmo assim. O curta acabou, e eu, perdido, não vi. Fiquei assistindo de novo, sem perceber a repetição, achando graça porque gosto do efeito cinematográfico clichê de a primeira cena ser também a última. Acho bonito. Mas as palavras recomeçaram e veio tudo à tona de novo, e eu pausei porque basta.

O “Sê-los” é maravilhoso, Fernanda! E eu te agradeço tanto, a você e ao resto da equipe, pela sensibilidade, pelo cuidado, por ter me dado outro tom, por ter me reinterpretado. Apesar da dureza que é se ouvir, foi lindo, e agradeço ao ator que interpretou o Roberto por me entender, sem nunca ter me conhecido.

Mas talvez a gente se conheça.

Eu, você, e o resto. Talvez haja um plano existencial onde a palavra é a digital. Onde a personalidade se constrói escrita. A gente se conhece, Fernanda. Todos nós nos conhecemos. Outro plano de existência e de reconhecimento humano é o cinema, onde a palavra não está no punho, mas nos olhos. E a gente transita: literatura, cinema, cinema, literatura.

Avise à Brenda que está tudo bem.

Entrar em colapso é uma maravilha. 




sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Olhares poucos: Porto Alegre, RS

Quem procura acha
Nunca mais voltar
Paz no seu coração
Não tenho medo da vida
Estou louco por você

Amigo meu
Vacilou
Noite vem, noite vai
Daqui pra frente
Deus quis

(TNT)












Outubro/Novembro de 2013

quarta-feira, 13 de novembro de 2013


“Quando chegam os dias claros, de sol quente, quando a nossa alma, ofegando, sente a natureza despertar, já então não suportamos mais os presídios circunvagados, as levas! E a liberdade que ferve alhures, de que outros participam, torna-se o nosso desejo lancinante. Nessa estação do ano, quando a primeira cotovia desfere o seu canto, começa por toda a Rússia, assim como na Sibéria, a marcha dos vagabundos. É então que os filhos de Deus abandonam as prisões e se internam nas florestas. Livres dos processos maçantes, dos fossos, das cadeias e das chibatadas, vagueiam a Deus dará, por onde lhes apraz, por onde se sentem mais livres, comendo e bebendo o que Deus lhes joga, dormindo à noite nos bosques ou nas planícies, sem cuidados, sem regulamentos, como pássaros sob o olhar da Providência, apenas dando ‘boa noite’ às estrelas do firmamento. Nada de ilusões: muitíssimas vezes é duro estar a serviço do general Cuco; passa-se fome, urge ser esperto; às vezes se fica mais de vinte e quatro horas sem ver um pedaço de pão, é preciso se esconder de todo o mundo, roubar, assaltar; uma vez ou outra cortar, até mesmo, uma garganta. ‘O colono é como uma criança: o que vê, pega’, diz um ditado siberiano. Esse provérbio se ajusta muito mais ao modo de ser dos andarilhos. É raro que sejam bandidos, mas comumente roubam, e isso mais por necessidade do que por cupidez. É quase impossível eles mudarem de vida. Muitos voltam de novo à vagabundagem, depois que saem do presídio e quando a caminho das lavouras coloniais. Supor-se-ia que essa nova condição de colonos os contentasse; mas não; atrai-os qualquer coisa mais adiante; têm de caminhar.”

(Dostoiévski, em Recordações da Casa dos Mortos)


P.S.: Já me despeço da obra e, daqui a alguns dias, ela viajará de novo para minha estante, aguardando paciente um momento de saudade. Despedir-se de um livro, e de seus personagens, do seu cheiro, do seu modo de ver o mundo, é como se despedir de um amigo que vai embora. É como livrar-se de um abrigo que foi seu, e só seu, por alguns instantes. É como deixar uma lembrança de lado, sabe aquela lembrança de infância que a gente esquece quando cresce? É como quebrar um laço, para criar outros, inclusive com esta obra mesmo que se vai. Algumas obras nunca vão. Mas a convivência se perde; o levar na mochila para todo canto que se vá. Pois chega a última página, a última página adiada. E o livro termina. O mundo acaba. Os personagens seguem seu rumo, sem o leitor no encalço. E este conhece outros mundos, pois há sede, desejo, a fome de quem viaja. Ler é como ser vagabundo em tempos de primavera. 

(outros trechos da obra aqui e aqui).

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Dor elegante

Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Como se chegando atrasado
Chegasse mais adiante.

Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha.

Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nessa dor
Ela é tudo que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra.



(Itamar Assumpção e Paulo Leminski) 

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

A morte

Ela chamou vovó para passear e não voltou
Ela levou Luciano do hospital para Mariana
Ela pegou Henrique no acidente sem ao menos avisar
Ela veio desculpar-se e sua mãe a acompanhou
Ela é determinada e ganhou minha amizade
Desde o princípio de tudo ela esteve presente
Essa ausência de vida pra Vida seguir em frente.


(Antônio Claret Fernandes, padre, missionário e militante do Movimento dos Atingidos por Barragens, MAB, na Zona da Mata Mineira. Hoje, realiza trabalhos junto à Igreja e ao Movimento, na Prelazia do Xingu, Pará, região amazônica, contra a Hidrelétrica de Belo Monte e em favor dos direitos das atingidas e dos atingidos). 

domingo, 6 de outubro de 2013

This boy - I´m from Barcelona


But there´s always gonna be this little boy inside of me
And there´s always gonna be this little girl inside of me

sábado, 5 de outubro de 2013

boletim do tempo


suponho que esteja chovendo em alguma cidade espanhola neste momento enquanto me sinto mal deste jeito; gosto de pensar nisso agora. vamos a um vilarejo mexicano - isso soa bem: um vilarejo mexicano enquanto me sinto mal deste jeito as paredes amareladas pelo tempo - aquela chuva lá fora, um porco se movendo em seu chiqueiro à noite incomodado pela chuva, os olhos diminutos como pontas de cigarro, e seu maldito rabo: pode vê-lo? não consigo imaginar as pessoas. talvez elas também estejam se sentindo mal, quase tão mal quanto eu. pergunto-me o que elas fazem quando se sentem assim? provavelmente não o mencionam. dizem apenas, "veja, está chovendo". Assim é melhor mesmo.
(Charles Bukowski)

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Montes Claros/ MG

O calor é uma presença, um fato, alguém ao lado, falando alto: emana dos poros, do concreto dos prédios, do branco da luz, do mercado, dos amigos, assunto diário. Calor em tudo. Tudo iluminado. Seco. Dolorido. Ardido. Quentura de gente. Corpo a corpo produzindo fogo. Povo produtor de mormaço.
Mas num sexo interminável,
gozo.
Mas numa terra de desertos,
chuva.












Primavera/2013

As colagens de Fernanda

borrar a manhã com aquarela
o melhor do tempo quente
é poder banhar-se de suor
flor
vitrola
e chão



minúsculo o início do verso
pois minúsculo é tudo que é belo



almas interiorianas não são
almas que se fecham em si mesmas
mas almas que se sentam em banco de praça
sorvete nas mãos
riscos do vento
folhas amores suspensos

violoncelo


violão

(colagens de Fernanda Xavier)

sábado, 28 de setembro de 2013

Desabafo de nº 3

A rua continua a mesma. E as árvores em seus lugares. Escrevo para conhecer outras avenidas, outros pastos, outras paisagens. Escrevo para abandonar (mesmo que por poucos instantes) a rua que ainda é a mesma. Onde fui feliz. Onde brinquei quando menino. E já era meia-noite, e minha avó chamava, e eu, ignorando, brincava. Hoje, há silêncio. E eu escrevo. A rua. Ainda é a mesma? Eu. Ainda sou o mesmo? O que muda, eu ou a rua? 

sábado, 7 de setembro de 2013

Diário de silêncios

Há exatos quatro meses, passei um tempo da minha vida acampado na beira de uma rodovia. Foram nove dias. Estava com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), em um acampamento de resistência. O objetivo dos acampados é conseguir a posse de um latifúndio improdutivo, que fica logo atrás de onde eles estão, a Fazenda Fortaleza de Sant´Anna. Fiquei apenas nove dias, mas as famílias que ali residem estão há mais de dois anos. Essa é a vida real.  De todo dia. Essa experiência fez parte do XVI Estágio Interdisciplinar de Vivência da Zona da Mata Mineira, o EIV.

Durante meu tempo de vivência fiz um diário, no qual relatei sentimentos, narrei silêncios, descrevi personagens. Personagens reais. Durante os quatro meses que se passaram pós-EIV, sempre me foi muito duro reler minhas anotações, lembrar-me de tudo.  As vozes, os rostos, os cheiros, as cores. Me lembro de tudo com muita verdade. E penso em voltar, em reencontrar aquela gente, que também sou eu. Reencontrar-me descalço, nu por inteiro, aprendendo com o Movimento a ter desconfiança do mundo e fé na força do povo.

Nunca tinha conseguido reler todo o diário, bastava um parágrafo e a dor voltava, esmagando o meu dia, a minha madrugada. Fechava o diário. Largava de lado.

Mas uma experiência assim não serve para ficar guardada na estante. É preciso reabrir o caderninho e contá-la de novo. Contar para quem quiser ouvir, inclusive para mim, que há gente morando na beira da estrada, porque não tem terra e casa. Sabe casa com parede e tapete na porta? É preciso contar ao mundo que o sistema segrega e o capitalismo mata. Mas é preciso contar também que há fé e há resistência. Que existem pessoas com brilho nos olhos, ainda que cansados. São dois anos de acampamento. Três de movimento. É preciso contar ao mundo a história do povo. E é por isso que, corajoso, resolvi reabrir o diário e reviver tudo aquilo, por mais que as lembranças ainda não tenham se assentado. EIV é digestão constante.

O acampamento se chama Dênis Gonçalves e fica na Zona da Mata Mineira, próximo às cidades de Goianá e Juiz de Fora. É foco de resistência do MST, lugar onde a bandeira vermelha trepida e os sonhos existem. Resistem.

Há pouco tempo, saiu a emissão de posse para o Dênis. Isso quer dizer que os trabalhadores deixarão o acampamento para, enfim, entrarem legalmente na Fazenda e constituírem o maior assentamento do estado de Minas Gerais. Já é hora de levantar paredes, colocar tapete na porta, plantar, colher, trabalhar na terra e do chão ver nascer os frutos.

É tempo de florir flores vermelhas,
reabrir o diário,
contar uma história.
Ou várias. 






domingo, 1 de setembro de 2013

Edward Hopper











Edward Hopper (1882 – 1967),
pintor da solidão,
um dos meus poetas favoritos.

Recordações da Casa dos Mortos


“Em Tobolsk vi, uma vez, um detento chumbado na muralha por uma corrente de menos de dois metros. Estava acorrentado por causa dum crime nefando cometido já depois de sua vinda para a Sibéria. Alguns desses detentos há que ficam assim durante cinco, dez anos. Trata-se quase sempre de pena imposta a latrocidas. Além desse, vi um outro que parecia de boa proveniência social. Fora, antes, funcionário não sei de qual repartição, seu modo de falar era cortês e resignado, e o seu sorriso untuoso. Mostrou-nos suas cadeias, explicou-nos como escolhia o jeito melhor para dormir no seu catre. Devia ter sido uma boa ave de rapina! Por costume aturam aquilo com paciência, parecendo, por fim, indiferentes. No fundo, porém, pensam na vez de se verem livres das cadeias. E para quê? Ora, para quê! Para, deixando aquela masmorra de abóbada baixa e de muralhas espessas, irem para um presídio com um pátio onde possam andar... Só, e nada mais. Liberdade, rua, estrada? Nunca mais! Cada um deles sabe muito bem que os que são acorrentados à bossagem ficarão perpetuamente no presídio, até a morte, com algemas nos pulsos e nos tornozelos. Sabe disso e, todavia, sua mais bela esperança, seu mais ardente desejo é que o tempo de viver chumbado às lages passe logo. Como suportaria estar assim, acorrentado durante cinco ou mais anos, se não embalasse essa esperança? Morreria ou endoideceria. Sem tal crença, como resistir?”

(Dostoiévski, Recordações da Casa dos Mortos, 1861)

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Fui pra rua


“Chegou e entrou pelo corredor com tijolos à vista e o piso cheio de buracos. Pediu para abrir a tranca, o responsável demorava a chegar, gritou para alguém abrir e finalmente uma senhora, negra, 45 anos de idade, aparecem, tira uma peça de ferro da cintura, parecida com uma chave de roda e, ao girar a peça, a porta abre e ele entra.

Na porta, alguém se apresenta, branco, alto, cabelo curto, não pega na mão.

- Estou vendo alguém para ficar com eles.

Uma mulher se aproxima, diz para o jovem branco que tem um substituto, ele insiste em outro, parece que ninguém quer a missão de ter de ficar com os alunos.

- Pra mim é tranquilo, eu dou conta, não precisa da presença de um professor, se vocês quiserem.

- Você não conhece os alunos, não tem noção do que eles são.

Ele insiste que não precisa de ninguém, pergunta se os livros da mala estão na mesa.

- Estão, aviso sempre eles, ‘não rasga o livro, não risca, do jeito que está vai voltar para outros usarem’.

Ele contra-argumenta.

- Não preciso disso, senhora, todo mundo tem direito de rasgar um livro se quiser, livros não são só para serem amados, tem livro que é horrível, então, para quem num teve contato nenhum, tudo vale.

- Mas o senhor não sabe, eu lido aqui com traficante, com ladrão de carro, com furto mesmo, e sei do que tô falando, falo pra eles que o livro tem chip, que a gente sabe onde tá cada um.

Ele ouve essa nojeira saindo da boca dela, um monte de lixo como o que tem na margem da represa do próprio Grajaú, o mesmo monte de lixo que ele vê nas esquinas quando foi pro Guacuri. Olha para o pátio e não vê ladrões, assassinos, menores, vê crianças querendo ter uma oportunidade de aprender.

O pátio está imundo, ele anda com a mala de livros. Desde que decidiu fazer um projeto para estimular a leitura, nunca pensou que seria assim, que voltaria tão desgostoso de cada evento. Foi ao banheiro, procurou uma privada para urinar, mas só existiam buracos no chão, olhou para a mala com os livros, que sentido fazia tudo aquilo? Deixou a mala no banheiro e saiu da escola.”


(Ferrez, julho de 2013, Revista Fórum)