terça-feira, 22 de maio de 2012

Edukators


(Edukators,  Hans Weingartner, 2004)

Violando a correspondência

De: Douglas de Oliveira Tomaz
Para: Stefani Martins


Viçosa - MG, 13 de maio de 2012
              (...)

              A Universidade, não somente a UFV, mas a Academia em geral, me desencanta a cada dia. Talvez eu a tenha idealizado demais. Pensei que encontraria pessoas determinadas, cada qual com sua ideologia, cada qual querendo mudar seu mundo, ou o mundo inteiro, por que não? Idealizei uma juventude mais politizada, pensante. Afinal, esse seria o melhor espaço para reflexão, questionamento, críticas. Esse seria o lugar de quem pensa. E eu digo que não é só de quem pensa. A maioria prefere calar o pensamento.

                Li num muro aqui da UFV a seguinte frase-desabafo: “A Universidade me deixou burro”.         Logo entendi a razão do desespero: a universidade está engessada. É uma gaiola de conhecimentos pré-prontos que recebemos por osmose, passivamente. Eu aprendo sobre leis, você sobre fatos históricos, mas quem vai ensinar o que importa? Quem vai nos ensinar a pensar, e não apenas a decifrar disciplinas? Quem vai nos ensinar a ir além?

   O nosso sistema pré-fabricado caminha, caminha, caminha e sinceramente, não sei (e ele também não sabe) para aonde vai, se é que está indo. A frase no muro foi apagada pela universidade. Passaram-lhe tinta branca por cima e tudo voltou a ser como era: muro vazio, irreflexivo. A universidade é quadrada, querida Stefani. Quadrada e enquadrante.
   (...)

quinta-feira, 3 de maio de 2012

André Dahmer

Leitura desde sempre


             “A delícia dos livros está em que eles, repentinamente, nos abrem os olhos, e vemos então coisas que nunca havíamos visto”, Rubem Alves. E então, assim estava eu: deitado em um espaço de leitura público, abrindo os meus olhos, maravilhando-me com um mundo que só me pertenceria por alguns instantes, enquanto o livro estivesse aberto. Após o fechar do livro, esse mundo se recolheria também, para esperar.

                Passado algum tempo ali, no silêncio que a leitura implica, a moça do espaço de leitura veio até mim: “Senhor, um bando de crianças entrarão aqui agora, não se assuste.” E pelo barulho que elas faziam do lado de fora, pensei mesmo em abandonar as minhas páginas e ir embora. Antes de me decidir, porém, elas entraram e, diminuindo o tom, foram direto para a seção de livros infantis. Sentaram-se em roda. Começaram a folhear os gibis. E, aparentemente, maravilharam-se também.

                Elas se olhavam com surpresa e graça, mostravam-nas umas às outras as ilustrações, o colorido dos livros. Identificavam seus super-heróis, os personagens favoritos. As crianças ainda não liam as palavras, ainda não tinham sido alfabetizadas. Mas quem precisa das letras, com tanta cor, tanta gravura? A mente infantil é capaz de imaginar histórias inteiras através do que elas veem desenhado. Talvez histórias melhores, mais criativas, que não passaram pelo crivo de um adulto sensato.

                Aqueles meninos e meninas estavam encantados. E eu me via sentado em roda com eles, ainda miúdo, querendo ler sem conseguir, mas lendo mesmo assim, explorando mundos novos, desvendando histórias com final feliz. Lembrei-me dos meus livros de infância, da minha primeira palavra lida e da luz que o mundo ganhou a partir dela. Retrospectivamente, me dei conta da centelha de vida que havia nascido em mim naqueles tempos de começar a ler e sorrir. E que estava nascendo também, e logo acendendo a chama, naquelas crianças bem ali.

                A professora chamou a meninada para contar-lhes uma história. Historinha sobre bruxas. As crianças se sentaram ao redor dela, ansiosas pelas palavras. Com ouvidos e olhos bem abertos, elas reagiam a cada página colorida passada, a cada reviravolta da história cativante. Nesse momento eu já havia largado o meu livro sério e socialmente relevante para também atentar-me às bruxas e aos fantasmas. As crianças estavam imersas naquele mundo e não havia, neste, nada mais bonito.

                Ao falar da “vitória da bruxa num concurso de beleza”, um garotinho se surpreendeu com o fato da sua coleguinha Vitória estar dentro do livro. Ele se questionava e olhava para a tal Vitória e olhava para o livro, sem entender nada. E eu, que acompanhava o embaraço do menino, deliciava-me com o mistério da palavra.

                Terminada a historinha, os pequenos voltaram correndo, sem hesitar, para a pilha de livros que tinham deixado por alguns instantes. Eles não faziam ideia do tamanho da sabedoria que estavam adquirindo ao folhear aquelas páginas. Eles não faziam ideia do quanto esse momento bom faz falta na vida de outros pequenos que não têm a oportunidade de desfrutá-lo, porque a vida deles exige mais e tanto. Eles não faziam ideia dos adultos que seriam e do quanto aquele som de páginas folheadas mudaria para sempre as suas vidas.

                A vontade de ficar, manifestada quando a professora lhes chamou para irem embora, é sinal de que eles voltarão, e para sempre voltarão, ao reencontro da delícia dos livros, coloridos ou não.

Recorte: Ostra feliz não faz pérola, Rubem Alves



Mulher com uma vela

                “Encontrei numa livraria de porão um cartão que me fascinou. É noite. Uma jovem segura uma vela sobre um fundo negro. A chama da vela está na horizontal, o que indica que há uma brisa soprando. A moça protege a chama com a sua mão. A luz da vela se filtra através de sua carne translúcida. De onde estará vindo o vento? A tela não explica. Mas a imaginação sugere. Para se ver bem não basta ter bons olhos. É preciso ter uma imaginação sensível. Ela abriu a porta de sua casa para alguém que bateu, o que explica a brisa. Quem poderia estar batendo à sua porta a tal hora da noite? Não se trata de um estranho porque ela está discretamente sorrindo, sem olhar diretamente nos olhos desse estranho que o pintor não pintou. É duvidoso que esse alguém invisível fosse o seu pai. O seu sorriso não é um sorriso que se oferece a um pai. Há uma pitada de pudor no seu rosto, ligeiramente inclinado... Seria o seu amado? Haviam marcado um encontro, ao abrigo dos olhos curiosos? Com certeza! Quem seria o seu amado? Provavelmente o pintor. O artista imortalizou na sua tela aquele momento de felicidade amorosa. O que é belo deve ser imortal. A prova de que ele imortalizou aquele momento está no fato de que hoje, séculos depois da morte dos dois, aquela cena continua a nos encantar... A arte não suporta o efêmero. Ela é uma luta contra a morte.”

(Ostra feliz não faz pérola, Rubem Alves, Ed. Planeta, página 90)