sábado, 17 de março de 2012

Aula de descrição, com Joseph Conrad


“Ele tinha sessenta anos; um homenzinho de costas largas e não muito aprumadas, ombros caídos e uma perna menor do que a outra, com a aparência retorcida e estranha que encontramos muitas vezes no pessoal que trabalha no campo. Tinha a cara de um quebra-nozes – queixo e nariz tentando se encontrar por cima da boca sumida – , emoldurada pelos cabelos soltos, grisalhos da cor de ferro e encaracolados, parecendo algodão salpicado de pó de carvão. E tinha olhos azuis naquele rosto velho, autênticos olhos de garoto, com a candura que certos homens bastante comuns conservam até o fim de seus dias, graças a um raro dom de simplicidade de coração e retidão de alma.”

(Joseph Conrad, Juventude, L&PM Pocket, pág. 13, 2006.)

domingo, 4 de março de 2012

"Ai de mim..."

A ilusão do migrante

Quando vim da minha terra,
se é que vim da minha terra
(não estou morto por lá?),
a correnteza do rio
me susurrou vagamente
que eu havia de quedar
lá donde me despedia.

Os morros, empalidecidos
no entrecerrar-se da tarde,
pareciam me dizer
que não se pode voltar,
porque tudo é conseqüência
de um certo nascer ali.

Quando vim, se é que vim
de algum para outro lugar,
o mundo girava, alheio
à minha baça pessoa,
e no seu giro entrevi
que não se vai nem se volta
de sítio algum a nenhum.

Que carregamos as coisas,
moldura da nossa vida,
rígida cerca de arame,
na mais anônima célula,
e um chão, um riso, uma voz
ressoam incessantemente
em nossas fundas paredes.

Novas coisas, sucedendo-se,
iludem a nossa fome
de primitivo alimento.
As descobertas são máscaras
do mais obscuro real,
essa ferida alastrada
na pele de nossas almas.

Quando vim da minha terra,
não vim, perdi-me no espaço,
na ilusão de ter saído.
Ai de mim, nunca saí.
Lá estou eu, enterrado
por baixo de falas mansas,
por baixo de negras sombras,
por baixo de lavras de ouro,
por baixo de gerações,
por baixo, eu sei, de mim mesmo,
este vivente enganado,
enganoso.


Carlos Drummond de Andrade


P.S.: Pareço estar andando em círculos, sempre repetindo as mesmas referências. Mas não há nada a fazer perante a beleza senão apreciá-la mais uma vez, e mais uma vez, e... mais um poema do Drummond, o poeta de sete faces - e mais a minha.